Cinco dias depois de legalizar o autocultivo de maconha para uso medicinal e a venda de óleo de cannabis nas farmácias, a Argentina está prestes a dar um novo passo rumo à quebra de um tabu. Em pronunciamento à nação, o presidente Alberto Fernández afirmou que cumpria um compromisso firmado durante a campanha eleitoral. “No dia de hoje, enviarei ao Congresso da Nacão, para seu tratamento, dois projetos de lei, para que todas as mulheres tenham acesso ao direito à saúde integral. O primeiro deles legaliza a interrupção voluntária da gravidez e garante que o sistema de saúde permita sua realização em condições sanitárias que assegurem sua saúde e sua vida”, declarou. “O segundo (projeto de lei) institui o Programa dos Mil Dias, com o objetivo de fortalecer a atenção integral da saúde da mulher durante a gestação e de seus filhos e filhas nos primeiros anos de vida — ele prevê assistência financeira, alimentar e sanitária para as mães.” Em 9 de agosto de 2018, por 38 votos a 31, o Senado rejeitou um projeto de lei que autorizava o aborto, desde que realizado até a 14ª semana de gestação. Dias antes, a Câmara dos Deputados tinha avalizado o texto. À época, a medida não tinha o apoio do então presidente Mauricio Macri, de direita.
“Minha convicção, que sempre foi expressada publicamente, é a de que o Estado acompanhe todas as gestantes em seus projetos de maternidade. Também estou convencido de que é responsabilidade do Estado cuidar da vida e da saúde daquelas que decidem interromper sua gestação durante os primeiros momentos de seu desenvolvimento”, afirmou Fernández. O líder peronista explicou que “a criminalização do aborto de nada serviu” e apenas permitiu que a prática ocorresse em clínicas clandestinas, em números preocupantes.
Segundo Fernández, a cada ano, cerca de 38 mil mulheres são hospitalizadas, como resultado de abortos malpraticados. “Desde a recuperação da democracia (1983), morreram mais de 3 mil mulheres por esse motivo. A legalização do aborto salva a vida das mulheres e preserva a sua capacidade reprodutiva”, destacou. O presidente citou, como exemplos, o México e o Uruguai, onde a interrupção da gravidez reduziu as mortes. De maioria católica e terra natal do papa Francisco, a Argentina tem sido palco de grandes protestos organizados pelos ativistas pró-aborto, que adotaram lenços verdes como símbolos de sua luta.
Ativistas
A advogada feminista argentina Sabrina Cartabia Groba, 37 anos, ativista da organização não governamental Red de Mujeres, explicou ao Correio que “o aborto e a maternidade são duas faces de uma mesma moeda”. “Eles têm a ver com a autonomia e a com a capacidade reprodutiva das mulheres. Eu recebo com muito entusiasmo essa proposta. Ela não apenas contempla mulheres que desejam interrromper a gestação, como também fortalece aqueles que desejam chegar à maternidade”, disse.
De acordo com Sabrina, o consenso na Argentina é o de que o aborto possa ser realizado até a 12ª ou 14ª semana de gestação. “Depois desse período, ele poderia ser feito quando a gravidez é produto do estupro ou quando houver risco de vida para a mulher”, afirmou. Integrante das Católicas por el Derecho a Decidir — uma ONG formada por católicas favoráveis ao aborto — , Marta Alanis não escondeu o entusiasmo. “Parece-me excelente a decisão do presidente Alberto Fernández. O teor do projeto de lei é muito similar, coincide com aquele apresentado pelo feminismo e pela Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto. Estamos em um dia de festa”, desabafou à reportagem, por telefone.
“O ativismo e a luta inabalável do movimento feminista alcançaram este avanço histórico: hoje, o aborto é uma questão central e urgente da agenda política”, comemorou Mariela Belski, diretora executiva da Anistia Internacional na Argentina.
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“Em 2018, houve uma enorme comoção popular e uma mobilização social muito grande. Mas não existia qualquer apoio do Executivo, que se opunha à aprovação da lei. O então presidente Mauricio Macri chegou a fazer manobras políticas para que a lei não fosse aprovada. Neste ano, por termos o Executivo ao nosso lado, as perspectivas são positiva. É muito difícil uma lei desse calibre ser aprovada se não tiver o apoio do Executivo.” Sabrina Cartabia Groba, 37 anos, advogada feminista e ativista da Red de Mujeres.
“Os setores religiosos da Argentina têm outras maneiras de atuar. Por exemplo, a Conferência Episcopal, reuniu-se com o presidente Alberto Fernández e expôs suas reservas ao projeto de lei. O presidente foi muito firme. Os movimentos religiosos, que não respondem à própria Igreja, buscam amedrontar os senadores, os deputados e a ativistas. Eles reagem violentamente porque perderam o debate, sabem que vamos ganhar.” Marta Alanis, integrante da ONG Católicas por el Derecho a Decidir.