Quarenta e oito anos depois de se tornar o senador mais jovem dos Estados Unidos, Joseph Robinette Biden Jr. — ou Joe Biden — fez história, ontem, ao derrotar o republicano Donald Trump e ao ser eleito o 46º presidente (o mais velho e o segundo católico) do país. Aos 77 anos, o primeiro candidato a vencer um presidente no cargo desde 1992 também é o mais bem votado em 233 anos de democracia, com 74,4 milhões de votos. Após duas tentativas (1988 e 2088), o democrata chega à Casa Branca com a promessa de construir pontes, ao invés de erguer muros. Às 22h40 (hora de Brasília), Biden fez o discurso da vitória, em Wilmington (Delaware), onde mora. “O povo dessa nação fez-se ouvir. Nos deu uma clara vitória, uma vitória convincente. Com o maior número de votos jamais dados na história da nação. (…) Amanhã, será um dia melhor”, prometeu. “Eu garanto que serei um presidente que não quer dividir, mas unificar. Que não existirão estados vermelhos e azuis, mas os Estados Unidos da América. (…) Eu busquei esse cargo para resgatar a alma da América, para reconstruir a espinha dorsal deste país.”
Biden homenageou a esposa — “Eu sou o marido da Jill, e não estaria aqui sem o amor dela” — e adotou um tom conciliador. “É hora de abandonar a retórica dura, de reduzir a temperatura, de vermos e escutarmos uns aos outros novamente e de fazermos progresso”, disse. “Esse é o tempo de curar a América. Essa campanha acabou. A América nos convocou para comandarmos as forças da decência, da justiça, da ciência e da esperança. Vamos acabar com a demonização da América. Vamos fazer isso aqui, e agora”, declarou o democrata. Ele anunciou que, amanhã, nomeará uma comissão de cientistas como conselheiros de transição e avisou que não poupará esforços no combater à pandemia da covid-19, que matou 237 mil americanos.
A senadora Kamala Harris (leia na página 16), a primeira mulher negra e de ascendência indiana a conquistar a vice-presidência, subiu ao púlpito antes. “Quando a nossa democracia esteve no voto, com a alma americana correndo risco, (…) vocês asseguraram um novo dia para a América”, disse. A escolha de Kamala para a chapa foi estratégica para atrair os votos das mulheres e dos afro-americanos. Trump não reconheceu a derrota e prometeu ir aos tribunais.
“Os observadores não puderam ficar nas salas de apuração. Eu venci a eleição, tive 71 milhões de votos legais. Coisas ruins ocorreram que nossos observadores não tiveram permissão para ver. Nunca aconteceu antes. Milhões de cédulas foram enviadas pelos correios sem que as pessoas nunca tivessem pedido por elas”, escreveu o magnata, com as letras maiúsculas, no Twitter, que censurou a mensagem. “71 milhões de votos legais. O maior número para um presidente no cargo!”, insistiu Trump, que deixa um legado sombrio.
“Honrado”
Pouco depois de a mídia dos EUA divulgar sua vitória na Pensilvânia (20 delegados) e em Nevada (6 delegados), no início da tarde, Biden pronunciou-se, pela primeira vez como presidente eleito, também pelo Twitter. “América, estou honrado por terem me escolhido para liderar nosso grande país. (…) Prometo a vocês: serei um presidente para todos os americanos — quer vocês tenham votado em mim, ou não”, escreveu. Em outro comunicado a simpatizantes, Biden disse que recebeu a notícia com “honra e humildade”. Trump jogava golfe na Virgínia. Ao retornar à Casa Branca, foi recebido com gestos obscenos.
Até o fechamento desta edição, Biden tinha obtido pelo menos 279 delegados dos 270 necessários para ganhar a Casa Branca (290, segundo projeção da Associated Press), enquanto Trump reunia 214. Com máscaras, milhares de pessoas tomaram as ruas das principais cidades do país para festejar (leia na página 14). Kamala interrompeu uma corrida e registrou, em vídeo, o momento em que parabenizou o companheiro de chapa, por telefone. “Nós conseguimos! Nós conseguimos, Joe! Você será o próximo presidente dos Estados Unidos!”, disse.
O ex-presidente Barack Obama conversou com Biden e com Kamala, por telefone, e felicitou o seu ex-vice. “Eu não poderia estar mais orgulhoso de parabenizar nosso próximo presidente, Joe Biden, e nossa próxima primeira-dama, Jill Biden”, comentou.
Alan Dershowitz, historiador político da Universidade de Harvard e ex-advogado de Trump no processo de impeachment, afirmou ao Correio que Biden “será uma força unificadora em um tempo de grande divisão nos EUA”. “Espero que ele estenda as mãos aos simpatizantes de Trump, ao elogiar coisas boas que o republicano fez, especialmente no Oriente Médio.” Keith E. Whittington, professor de política da Universidade de Princeton, explicou que a noção de um presidente para todos os norte-americanos costumava ser uma suposição padrão. “Nos anos recentes de extrema polarização, isso tem sido uma promessa difícil de sustentar e de crer. Não é surpreendente que Biden tente tornar esse compromisso explícito. A nação segue dividida.”
“Já foi dito que o eleitorado americano é o deus da recompensa e da vingança. Isso é especialmente verdade quando um presidente concorre à reeleição”, disse ao Correio Charles Stewart III, cientista político do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Segundo ele, a derrota de alguém que agiu “acima da política”, que teve êxito em empurrar a agenda legislativa e que governou sob uma boa economia representa “o julgamento das habilidades de liderança de Trump”. “Biden gerenciará a pandemia de modo muito melhor e trabalhará para ser uma figura de construção de consenso. Ele ajudará o país a retormar a ‘política do normal’.”
Durante a campanha, Biden esboçou as prioridades para os 100 primeiros dias de governo: o combate à covid-19, a revitalização da economia, o retorno ao Acordo de Paris contra mudanças climáticas, uma reforma judicial e um pacote de reforma migratória. “No combate ao aquecimento global, Biden vai revigorar a Agência de Proteção Ambiental. Nas relações exteriores, deverá se destacar, junto a aliados, como um parceiro e um líder”, disse Stewart. Para James Naylor Green, historiador político da Brown University (em Rhode Island), o maior desafio de Biden será aprovar a legislação, se não conseguir maioria no Senado. “O primeiro obstáculo dele será lidar com a covid-19 e a com a economia”, previu.
Análise da notícia
No berço da democracia
A conquista da Pensilvânia por Joe Biden teve sabor de vitória pessoal, mas também forte simbolismo. Além de ser o estado onde o presidente eleito nasceu — na cidade de Scranton, em 20 de novembro de 1942 —, a Pensilvânia é considerada o berço da democracia norte-americana. Foi na Câmara Estadual da Pensilvânia, em Filadélfia, que houve a assinatura da Declaração de Independência dos Estados Unidos em relação à Grã-Bretanha, em 1776, e onde adotou-se o primeiro rascunho da Constituição, em 1781.
O fato de Biden ter vencido com votos da Pensilvânia torna-se icônico. Ao perceber que a Pensilvânia poderia ser o estado que inclinaria os votos a seu favor, Trump ameaçou levar os resultados da eleição à Suprema Corte meses antes, lembrou ao Correio James Green, historiador político da Brown University (em Rhode Island). O presidente republicano também engajou-se em uma campanha difamatória contra a Filadélfia, ao afirmar que os políticos da cidade eram corruptos e roubariam as eleições. Na iminência da derrota, menosprezou a democracia de seu próprio país. O triunfo de Biden na Pensilvânia silenciou Trump e reforçou o peso da Constituição mais antiga do mundo.
Eu acho...
“Biden vai revigorar o compromisso da América com os valores democráticos, na condução das relações exteriores. Ele se recusará a apoiar as ambições autocráticas de demagogos como Jair Bolsonaro. Também reafirmará o compromisso dos Estados Unidos com os princípios centrais da dignidade humana.”
Bruce Ackerman,
professor da Faculdade Sterling de Direito e de Ciência Política da Universidade de Yale, em New Haven (Connecticut)