Os americanos protagonizam uma disputa presidencial que entrou para a história. Em meio a uma grave crise sanitária, foram às urnas em massa para decidir quem ocupará a Casa Branca pelos próximos quatro anos. A votação, finalizada ontem, acumula recordes. Mobilizou o maior número de eleitores desde o início do século 20, somou uma quantidade jamais vista de votos antecipados (101 milhões) e teve uma participação de latinos nunca antes registrada.
Como esperado, a polarização política que marca o país ao longo dos últimos quatro anos se refletiu nas urnas. Até o fechamento desta edição, às 2h30, o democrata Joe Biden liderava a disputa com 205 delegados e Donald Trump tinha 136, segundo os meios de comunicação estadunidenses. Mas as atenções se voltavam para possíveis vitórias do republicano em estados considerados decisivos, como Flórida e Pensilvânia, com 29 e 20 votos no colégio eleitoral, respectivamente. E as bolsas de apostas começavam a indicar a possibilidade de uma reviravolta que garantiria a reeleição de Trump. São necessários 270 delegados para conquistar a Casa Branca.
Independentemente do resultado, especialistas concordam que essa é uma disputa memorável. O número de votos pelo Serviço Postal é equivalente a 73% dos votos da eleição anterior, segundo a organização US Elections Projects, sendo que, em quatro estados, houve mais de 100% de votação pelos correio do que em 2016. Entre os eleitores latinos, outro recorde: um total de 8,6 milhões votaram antes da abertura das urnas e, segundo a organização Voto Latino, 33% dos votos enviados pelo correio em estados como Arizona, Texas, Florida, Pennsylvania, Nevada e Carolina do Norte são de eleitores que não participaram do pleito de 2016. O grupo registrou mais de 600 mil eleitores para a votação de 2020, sendo que três quartos deles têm entre 18 e 39 anos.
A quantidade de votos pelo correio surpreendeu analistas políticos, embora seja um movimento natural por conta da covid-19, que também bateu recorde de novos casos em 24 horas na última segunda-feira, com 93 mil contaminados. “Essa votação é um fator relevante para mitigar os riscos inerentes das aglomerações na pandemia”, explica a cientista política Ariane Roder, do Instituto Coppead de Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O esforço para votar foi tão grande que nem a contaminação pelo vírus derrubou os eleitores. Em St Louis (Missouri), mesários recolheram votos de pessoas infectadas com a covid-19 vestidos com roupas de proteção máxima, respiradores e face shields. De forma geral, não houve grandes incidentes, mas muitos comerciantes nos maiores centros urbanos colocaram proteção extra nas fachadas de seus estabelecimentos com medo de possíveis ondas de violência durante e após a votação.
Para Ariane Roder, não foi apenas o coronavírus o responsável pelos 101 milhões de votos enviados antecipadamente. “Acho que a polarização é o principal fator para explicar isso”, diz. “A despeito das diversas críticas endereçadas à política e aos políticos, é por meio dela que se faz mudanças e que se implementá ideias e projetos. Sendo assim, quando o ímpeto de mudança é relevante e o cenário é de polarização, a tendência, de fato, é ir às urnas. Trata-se de uma grande disputa.”
James Green, historiador da Brown University, acredita que a covid-19 também ajudou, mas não apenas pelo medo de aglomeração. “A política sanitária foi um desastre, e semana passada teve um auge de infecções, as pessoas ficam ouvindo o presidente dizendo que está tudo bem, que está acabando. Isso revoltou muita gente, muitos velhinhos republicanos que estão com medo estão revoltados”, diz. Ele garante que o clima da campanha foi o mais estranho da história dos EUA. “Não houve uma campanha tradicional. Na reta final, Trump tentou com comícios, mas isso também foi revoltante porque a maioria das pessoas não usava máscara.”
Não representatividade
Juscelino Colares, professor da Case Western Reserve University School of Law, em Ohio, acredita que o clima controverso da campanha pode ser atribuído também a um sentimento de não representatividade da população americana. “Ela não se viu representada na mídia americana, e isso faz com que as pessoas tenham reação forte de quererem se fazer ouvidas. A votação tem sido muito expressiva por correio e, em decorrência dessa flexibilidade, as pessoas, por precaução, procuraram requisitar o voto por correio”, diz.
Colares lembra que, normalmente, os eleitores democratas tendem a ter uma vantagem na votação pelo serviço postal porque, tradicionalmente, gostam de decidir o voto antes do pleito. O grupo dos conservadores, que votaria no partido Republicano, teria um contingente maior de indecisos e seria mais desconfiado quanto às fraudes. Por isso, prefere a urna diretamente. “Os democratas tendem a formar a sua impressão sobre o candidato no momento anterior e não mudar de opinião, diferentemente do eleitor mediano, do eleitor indeciso”, explica. “Sem dúvida, o recorde expressivo na votação pelo correio é surpreendente e mais surpreendente ainda é que os democratas não aparentam atingir as metas tendo em vista que tendem a superar os republicanos.”