Quatro dias depois da vitória nas eleições norte-americanas, Joe Biden rompeu o silêncio, classificou de “embaraçosa” a recusa de Donald Trump em admitir a derrota e enviou um recado ao republicano. “Senhor presidente, espero ansioso para falar com você”, afirmou, olhando para a câmera, entre sorrisos. Ao ser questionado sobre a postura do magnata, o democrata respondeu: “Simplesmente, acho que é um constrangimento, francamente”. Com o respaldo do procurador-geral, Wil-liam Barr, que anteontem abriu uma investigação sobre “alegações específicas de fraude”, a Casa Branca emitiu novos sinais de indisposição em destravar a transição de poder. As agências federais foram aconselhadas a preparar seus planos orçamentários para fevereiro, ignorando completamente a mudança de governo. Uma declaração do secretário de Estado, Mike Pompeo, causou transtornos em Washington. “Haverá uma transição tranquila para um segundo mandato de Trump”, respondeu o chefe da diplomacia dos EUA, ao ser questionado sobre contatos com a equipe de estruturação do governo de Biden.
Durante a entrevista coletiva em Wilmington (Delaware), Biden afirmou que a resistência de Trump em aceitar a derrota poderá ser prejudicial à própria história do republicano. “Como posso dizer isso com tato? Acho que não ajudará no legado do presidente”, respondeu. Ao mesmo tempo, o democrata buscou relativizar prováveis problemas causados pelo magnata nos próximos 70 dias, até a posse do novo governo. “O fato de eles (republicanos) não estarem dispostos a admitir que vencemos a esta altura não tem muitas consequências no planejamento do que poderemos fazer entre agora e janeiro”, afirmou Biden.
A equipe de transição divulgou, ontem, uma lista dos funcionários que terão a tarefa de revisar as operações das agências federais em todo o governo. “Nossa nação está lutando contra uma pandemia e uma crise econômica, por apelos urgentes pela justiça racial, e contra a ameaça existencial das mudanças climáticas. Devemos nos preparar para uma transferência contínua de conhecimento para o próximo governo, a fim de protegermos nossos interesses em casa e no exterior”, defendeu o senador Ted Kaufman, codiretor do gabinete de transição.
Trump continuava a tuitar freneticamente, ao acusar irregularidades nas eleições de 3 de novembro e proclamar vitória. “Nós venceremos!”, escreveu. “Estamos progredindo muito. Os resultados começarão a chegar na próxima semana. Vamos fazer os Estados Unidos grandes de novo!”, acrescentou. “Olhem para os abusos em massa na apuração de votos e, assim como a vacina inicial, lembrem-se do que eu lhes disse”, acrescentou. Mais uma vez, o atual titular da Casa Branca teve tuítes marcados com a mensagem “Esta alegação de fraude eleitoral é contestada”. Segundo a emissora CNN, advogados da campanha de Biden chamaram de “teatro” os recursos judiciais interpostos pelo Partido Republicano e por Trump.
Investigação
A decisão do procurador-geral William Barr de iniciar uma investigação sobre supostas anomalias nas eleições levou à renúncia de Richard Pilger, diretor do Escritório de Crimes Eleitorais do Departamento de Justiça. Roland Riopelle — ex-procurador federal para o distrito sul de Nova York — disse ao Correio que a manobra de Barr vai na direção contrária da política estabelecida pelo Departamento de Justiça, segundo a qual a pasta não investigará uma eleição até a certificação dos resultados pelo Estado ou pela jurisdição que contabiliza os votos.
“A razão disso é que intervir e anunciar uma investigação de forma precoce pode influenciar as pessoas que apuram os votos e interferir no próprio processo. As ações do procurador-geral são realmente sem precedentes e preocupantes”, destacou. “Barr parece considerar o seu papel de soldado leal ao presidente, obrigado a cumprir qualquer ordem que Trump possa dar, por mais imprópria que seja”, alfinetou Riopelle.
» Eu acho...
“Eu duvido até mesmo que Trump compareça à cerimônia de posse de Joe Biden, em 20 de janeiro. Ele tem um sério problema. O presidente republicano enfrenta acusações criminais federais. Uma possibilidade é de que ele use a ‘fraude’ eleitoral como desculpa para renunciar, a fim de que o vice, Mike Pence, possa perdoá-lo de todos os crimes federais.” James Green, historiador político da Brown University (Rhode Island).
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Aproximação com a Otan e a Europa
Em mais uma demonstração de que a transição continua em marcha acelerada, pelo menos entre os democratas, o presidente eleito, Joe Biden, conversou por telefone com o presidente francês, Emmanuel Macron, e sinalizou uma reaproximação com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Biden manifestou a intenção de “revitalizar os laços bilaterais e transatlânticos”, em um aceno para a Otan e a União Europeia (UE). Ambos falaram sobre os desafios da luta contra a pandemia da covid-19 e a “ameaça das mudanças climáticas”.
De acordo com uma nota da equipe de Biden, o norte-americano “agradeceu ao presidente Macron pelos cumprimentos (pela vitória na eleição) e expressou o desejo de fortalecer as relações entre os EUA e a França.
Mais cedo, Biden também conversou com o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, e com a chanceler alemã, Angela Merkel. A chefe de governo da Alemanha externou o desejo de uma cooperação próxima e baseada na verdade entre os dois aliados históricos. “A chanceler e o presidente eleito concordaram que as relações transatlânticas são de grande importância, ante os muitos desafios globais”, afirmou nota divulgada pelo gabinete de Merkel. Biden manteve conversações telefônicas, ainda, com o premiê canadense, Justin Trudeau, e com o primeiro-ministro da Irlanda, Michael Martin.
A cientista política Ariane Roder, professora de relações internacionais do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppead-UFRJ), espera que a política externa do governo Biden seja dissonante daquela vista na gestão de Donald Trump, que conseguiu se indispor com parceiros-chaves. “Espera-se do democrata uma postura mais fundamentada no multilateralismo e encarada na revitalização do engajamento histórico dos Estados Unidos no avanço e no aperfeiçoamento das organizações e regimes internacionais”, explicou ao Correio.
Para Roder, a relação dos EUA com alguns países da Europa deverá ser ressignificada, com a reconstrução das bases de cooperação e solidariedade em temas de interesse comum. “O negacionismo de Trump, associado à sua política protecionista e nacionalista, contaminou muitas relações diplomáticas, assim como possibilitou o avanço de outras. O que se observará a partir de agora são trocas de sinais entre essas parcerias, considerando a inversão de valores e o redirecionamento da política externa estadunidense”, previu. (RC)