Chegada de Kamala Harris à vice-presidência representa guinada no respeito aos direitos humanos

Para especialistas, a chegada da primeira negra à vice-presidência e a expectativa de que ela terá protagonismo no governo sinalizam uma onda de avanços em questões raciais e de gênero

Jorge Vasconcellos
Vilhena Soares
postado em 09/11/2020 06:00 / atualizado em 09/11/2020 07:00
 (crédito: AFP)
(crédito: AFP)

As primeiras palavras de Kamala Harris como vice-presidente eleita dos Estados Unidos ainda ecoam nos quatro cantos do planeta e alimentam esperanças de que barreiras raciais e de gênero possam ser vencidas. A afirmação da democrata de que ela é “a primeira, mas não a última” mulher escolhida para um cargo ocupado até hoje por 45 homens brancos já é um marco da histórica eleição americana. Porém, as expectativas em torno da vice de Joe Biden, presidente eleito dos EUA, vão além e giram em torno do protagonismo que ela — filha de mãe indiana e pai jamaicano — terá no novo governo.

A projeção de Kamala Harris, que é senadora pelo estado da Califórnia, é tão grande que nem bem o novo governo começou e já crescem, no meio político americano, os rumores de que ela, hoje com 56 anos, poderá ser uma forte candidata à presidência nas próximas eleições, em 2024. Biden, 78, disse, várias vezes, que se considera velho para se manter por muito tempo no cargo, o que o motivou a escolher uma vice mais jovem. “Preciso de alguém que trabalhe ao meu lado que seja forte e inteligente, forte e pronto para liderar. Kamala é essa pessoa”, afirmou o democrata em um dos comícios da campanha.

A advogada Eunice Aparecida de Jesus Prudente, 73 anos, pioneira do Movimento Negro no Brasil e ex-secretária de Justiça do Estado de São Paulo, acredita que a vice democrata deverá ter um protagonismo no novo governo. “Ela atraiu negros, latinos e índios para a campanha e, agora, tem um compromisso de enfrentamento à desigualdade social, ao racismo estrutural”, justificou. Eunice, primeira e única professora negra da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), cita a própria história como um exemplo da importância de existir exemplos para as novas gerações. “Acho que todas as vezes que nós conseguimos transpor essas barreiras, enfrentar a discriminação racial, a discriminação de gênero, é muito importante que se prepare o caminho para outros e outras prosseguirem e terem uma participação na sociedade.”

Para a historiadora e escritora americana Alice L. George, autora de livros como O assassinato de John F. Kennedy — Trauma político e memória americana, a eleição de Kamala é historicamente significativa e envia uma mensagem poderosa. Na sua opinião, o fato de uma mulher com ascendência asiática e negra estar, pela primeira vez, na alta liderança dos Estados Unidos é um símbolo importante da disposição do país em aceitar homens ou mulheres de origens diversas e colocá-los em posições de liderança. Alice George acrescenta que Kamala não é a primeira mulher a aparecer na chapa presidencial de um grande partido, mas a única vencedora. Ela lembrou que, no discurso da vitória, a vice-presidente eleita saudou todos aqueles na história dos EUA — “mulheres negras, asiáticas, brancas, latinas e nativos americanos” — que lançaram as bases para a sua eleição.

Na visão da escritora, Kamala desempenhará um papel fundamental na Casa Branca. “Antecipo isso, em primeiro lugar, porque acredito que Joe Biden também era um vice-presidente ativo e esperava que o próprio vice-presidente assumisse o fardo da liderança. Em segundo lugar, duvido que Harris teria aceito a nomeação para vice-presidente sem garantias de que será uma jogadora significativa na Casa Branca”, afirmou Alice George. “Consequentemente, sua eleição vai muito além do simbolismo. Colocá-la em uma posição tão importante significa que as vozes das mulheres e das minorias terão um papel destacado em todas as deliberações, incluindo aquelas relativas à justiça e à igualdade nos Estados Unidos.”

Hannah Maruci, doutoranda e mestra em ciência política na USP, também acredita que Kamala pode influenciar muitas mulheres a seguirem o caminho da política nos próximos anos. “Eleger nos Estados Unidos a primeira vice-presidenta negra e filha de imigrantes representa a possibilidade de voltarmos a vislumbrar um mundo diferente, principalmente em uma eleição em que o adversário era uma figura que ameaçava a democracia. Não tenho medo de afirmar que a eleição dela inspirará mulheres e meninas a também ocuparem o espaço da política institucional, e que isso se refletirá nas próximas eleições. É muito mais fácil se imaginar em um espaço em que você enxerga que existem pessoas semelhantes a você. Isso diz que lá também é seu lugar”, avaliou a também coidealizadora do projeto A Tenda das Candidatas, que presta consultoria gratuita a mulheres que concorrem a cargos políticos.

Cobranças

Movimento que, segundo especialistas, teve um papel decisivo nas eleições americanas, o Black Lives Matter comemorou a presença da democrata na presidência. Patrisse Cullors, cofundadora, comemorou a vitória de Harris e Biden e também solicitou uma reunião com a dupla para discutir os compromissos a serem firmados com a comunidade negra. “Sem o apoio retumbante dos negros, seríamos confrontados com um resultado eleitoral muito diferente”, escreveu na carta enviada a eles, no sábado.

“Não estávamos nem percebendo o nível de trauma diário que vivíamos nas mãos de Donald Trump. Em um nível emocional e simbólico, é difícil não comemorar Kamala Harris”, disse Melina Abdullah, também cofundadora do Black Lives Matter, ao jornal americano Hartford Courant. Acredita-se que a dupla de democratas será bastante pressionada pelo movimento negro para o cumprimento das promessas de campanha. O enfrentamento ao racismo é um dos quatro pontos prioritários da nova gestão.

O papel de Kamala na defesa da população negra também foi ressaltado por Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora em saúde, feminismo e política. “Kamala conhece as ambiguidades do direito penal, a injustiça do racismo e da brutalidade policial, é explícita na defesa do direito ao aborto”, destacou em seu Twitter oficial.

Kamala Harris identifica-se como uma negra americana, mas também falou sobre sua herança indiana ao longo da campanha. Em seu discurso de vitória, disse que sua falecida mãe, Shyamala Gopalan, era a “mulher mais responsável” pela presença dela ali. Kamala usava um terno branco, cor símbolo do movimento sufragista, que foi usada por mulheres americanas que lutaram pelo direito ao voto no fim do século 19.

Former US Representative and voting rights activist Stacey Abrams speaks at a Get Out the Vote rally with former US President Barack Obama as he campaigns for Democratic presidential candidate former Vice President Joe Biden on November 2, 2020, in Atlanta, Georgia. / AFP / Elijah Nouvelage
Former US Representative and voting rights activist Stacey Abrams speaks at a Get Out the Vote rally with former US President Barack Obama as he campaigns for Democratic presidential candidate former Vice President Joe Biden on November 2, 2020, in Atlanta, Georgia. / AFP / Elijah Nouvelage (foto: Elijah Nouvelage/AFP)

Stacey Abrams se vê refletida

Especialistas avaliam que a vitória democrata teve forte participação do voto dos negros, e muitos deles foram às urnas motivados pelo trabalho de Stacey Abrams. A advogada de 46 anos criou a organização Fair Fight, com o principal objetivo de angariar votos para o partido democrata em 2020. A ativista, que trabalhou na Geórgia, conseguiu registrar mais de 800 mil novos eleitores no estado. Abrams comemorou os frutos do trabalho ontem. “É um privilégio se ver refletida em uma liderança”, declarou, em entrevista à CNN.

 

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