Conexão diplomática

Olhos atentos para a esfinge americana

A eleição desta terça-feira responderá a outras perguntas, além da principal e óbvia — quem será o próximo presidente dos Estados Unidos. A três dias do dia da votação, não apenas é incerto o desfecho da disputa pela Casa Branca. Entre outros fatores inéditos, pela antecipação generalizada do sufrágio, seja com a presença do eleitor na seção em que está inscrito, seja com o voto pelo correio. Para complicar, alguns estados aceitarão a entrada de cédulas postadas até 3 de novembro, ainda que cheguem ao destino dias mais tarde.
Se o próprio nome do vencedor pode ficar pendente de uma contagem arrastada, respostas de alcance mais profundo e duradouro devem emergir de um olhar mais atento ao veredicto das urnas. Começando pela taxa de participação, que se prenuncia a maior em várias décadas. Ainda mais reveladora tende a ser a radiografia da distribuição geográfica e social dos votos.
Quatro anos atrás, Trump surpreendeu os analistas e desmentiu — em parte — as pesquisas ao derrotar a adversária democrata. Hillary Clinton liderava as intenções de voto em escala nacional e, de fato, obteve 3 milhões de votos a mais que o magnata do Partido Republicano. Perdeu porque o sistema eleitoral indireto faz da escolha do presidente americano a somatória de 50 eleições — uma em cada estado, e quase todas decididas sem proporcionalidade: o vencedor fica com todos os delegados ao Colégio Eleitoral, por menor que seja a vantagem sobre o oponente.
Para além de definir quem vai liderar a maior potência militar e (ainda) econômica, a votação que se encerra na terça-feira permitirá enxergar movimentos subcutâneos no tecido social do país.

Fator covid

A coincidência da reta final da campanha com o novo e vigoroso ascenso da pandemia em diferentes regiões dos EUA pode jogar um papel decisivo no desfecho da disputa pela Casa Branca. Em especial, segundo a leitura mais aprofundada das pesquisas, parece estar minando a popularidade do presidente em um eleitorado cujo apoio foi fundamental para a vitória de Trump, em 2016. Os subúrbios das grandes cidades são reduto da classe média-alta, majoritariamente branca, e foram, por décadas, uma das fortalezas do Partido Republicano. Neste ano, a pandemia parece causar erosão no apoio a Trump entre as mulheres desse segmento, no qual elas formam a maioria, como no conjunto da população.

Não confie em ninguém...

O comparecimento dos jovens é outro ingrediente capaz de fazer pender a balança de uma corrida que chega à reta final ponteada por incógnitas. Em 2008, o afluxo em massa de novos eleitores pavimentou o caminho de Barack Obama à Casa Branca, desde as primárias do Partido Democrata, em que o senador novato por Illinois montou na zebra e desbancou a favoritíssima Hillary Clinton — ex-primeira-dama, ex-senadora e ex-secretária de Estado.
Diferentemente do primeiro presidente negro dos EUA, seu vice, Joe Biden, demonstrou nas primárias deste ano que tem apelo reduzido entre a juventude. Mesmo assim, tende a abocanhar maioria expressiva entre os eleitores de faixa etária mais baixa.
No embalo das rebeliões juvenis de 1968, floresceu o lema “não confie em ninguém com mais de 30 anos”. Hoje, para Trump e os republicanos, o lema se escreve com sinal trocado: melhor não contar com muita gente que tenha menos de 30.

Maioria nas minorias

A cada ciclo eleitoral nos EUA, aumenta o peso de hispânicos, negros e outras minorias étnico-raciais na composição da sociedade e, por consequência, seu impacto nos resultados. Estudiosos do processo político detectam há algumas décadas deslocamentos significativos na demografia de diversos estados, com reflexo paulatino nas tendências políticas.
Ao menos desde os anos 1960, quando o governo de John Kennedy colocou em marcha a lei federal sobre direitos civis, o Partido Democrata firma posição como a legenda preferida dos afro-americanos. Biden, como vice de Obama, capturou esse segmento desde as primárias e chega ao encerramento da votação com 80% a 90% das preferências nas pesquisas.
Diferentemente dos negros, os hispânicos se apresentam como uma comunidade bem mais dividida na hora do voto. Pendem majoritariamente para os democratas em dois dos maiores colégios eleitorais: Nova York, onde predominam os porto-riquenhos, e a Califórnia, onde o sotaque é mais mexicano. Na Flórida, outro estado com peso no Colégio Eleitoral, a presença maciça de cubanos e — mais recentemente — venezuelanos favorece os republicanos, pela política de linha-dura com os regimes de esquerda.Em especial lá, o desempenho entre os hispânicos é elemento crítico para Trump, que pode ver se esfumar o sonho da reeleição caso não fature os 29 delegados em jogo no estado.

“Curral” democgráfico

A somatória dos fatores de ordem social, étnica, racial e de gênero desenha há algumas décadas um cenário perigoso para o Partido Republicano. A cada eleição, sobretudo as presidenciais, a legenda conhecida como GOP (Grand Old Party) ganha um perfil cada vez mais pronunciado como porta-voz de homens brancos de idade mais avançada.
Trump se elegeu, em 2016, driblando o “curral” demográfico com um discurso econômico e ideológico populista que arrebatou o voto dos trabalhadores brancos — uma sólida reserva eleitoral dos democratas, que definiu a favor do bilionário a disputa com Hillary. Até aqui, as pesquisas nacionais e estaduais sugerem que esse resultado pode não ser suficiente para garantir o segundo mandato.