CHILE

Plebiscito decide o rumo da Constituição

Passado um ano do início da mais grave crise social em três décadas, eleitores vão às urnas, hoje, para votar se a Carta em vigor desde a ditadura deve ou não ser modificada. Pesquisas sinalizam a vitória do movimento Aprovo, apoiado pela oposição de esquerda


Um ano depois do início de uma convulsão social que levou milhões às ruas de Santiago — com embates violentos entre manifestantes e forças de segurança, culminando com um decreto de estado de emergência —, os chilenos decidem, hoje, se a Constituição herdada da ditadura será substituída por uma nova Carta Magna. Com as pesquisas apontando que o movimento Aprovo tem larga margem de vantagem — de 60% a 75% —, é de se esperar que o resultado do plebiscito de hoje resulte na mudança constitucional defendida, em especial, pela oposição de esquerda. Já os partidários do Rejeito, alinhados à coalizão conservadora no poder, preferem apenas alterações no texto básico, alegando que a estabilidade do país está em jogo.

O plebiscito foi costurado em 15 de novembro do ano passado, em um acordo histórico entre os partidos de esquerda e direita. A revisão da Constituição era a principal reivindicação da pior crise social em três décadas e foi defendida por manifestantes e políticos que apontam o texto como a base da desigualdade no país. Embora tida como uma das nações mais economicamente prósperas da América Latina, no Chile, os 10% mais pobres receberam, em 2018, 10% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto os 10% da elite abocanhanharam 41,5%.

Nas urnas, os eleitores devem responder a duas perguntas: “Você quer uma nova Constituição? e “Que tipo de órgão deve redigir a Nova Constituição?”. Se o Aprovo vencer, como sinalizam as pesquisas, será preciso escolher entre uma nova Assembleia Constituinte, formada exclusivamente por membros eleitos em votação popular, e uma Convenção Mista, integrada em partes iguais por parlamentares em exercício e constituintes escolhidos especialmente para a ocasião.

Ruptura
Cristóbal Bellolio, professor da Escola de Governo da Universidade Adolfo Ibáñez, em Santiago, acredita que as manifestações romperam “uma narrativa de progresso da elite política e econômica chilena, sustentada por bons indicadores, que consideram que os últimos 30 anos do Chile foram os de maior prosperidade econômica, estabilidade, paz social, o que já diz muito na região”. Para ele, a eclosão marcou uma ruptura com “os atores que lideram os processos políticos”, e agora é preciso “rearticular” como essa diversidade ideológica se expressa, afirma o autor de Liberalismo: uma cartografia, lançado nesse ano, e ainda não editado no Brasil.

Um dos argumentos dos partidários do Rejeito é que o Chile pode virar uma “nova Venezuela”, com o risco de a instabilidade tomar conta do país. Os episódios de violência que acompanharam as passeatas do ano passado, e que se repetiram há uma semana, com o incêndio de duas igrejas na comemoração de um ano da revolta, sustentam os temores.

Na véspera do plebiscito, porém, o Fundo Monetário Internacional (FMI) publicou sua visão sobre toda a movimentação política, acrescentando uma nota de tranquilidade com relação ao horizonte que se desenha no país sul-americano. “Esse processo constitucional abre a porta para que o Chile continue sendo um líder na região no âmbito econômico”, disse o diretor do Departamento do Hemisfério Ocidental do FMI, Alejandro Werner. Ele acrescentou que o plebiscito poderia levar a uma “nova etapa, na qual se mantenham os principais elementos que geraram o êxito chileno em termos de crescimento econômico das últimas décadas, mas que também isso se complemente com uma agenda de cobertura social, com finanças públicas mais progressivas”.

O Chile tem, atualmente, uma das maiores rendas per capita da América Latina (US$ 20 mil) e a previsão é de que será um dos países da região que conseguirá se recuperar mais rápido dos efeitos econômicos da pandemia do novo coronavírus. O FMI estima que, depois de uma queda do PIB de 6% nesse ano, em 2021 alcançaria uma expansão de 4,5%.

Para saber mais

Truculência militar


Em 18 de outubro de 2019, Santiago experimentou violentos confrontos entre as forças de segurança e manifestantes que protestavam contra o aumento dos preços nas passagens do metrô. O presidente conservador Sebastián Piñera declarou, na ocasião, estado de emergência na capital, atribuindo a um oficial militar a responsabilidade pela segurança pública. No dia seguinte, milhares de pessoas foram às ruas, daquela vez, denunciando sobre a desigualdade no país. Novos confrontos explodiram.

Pela primeira vez desde o fim da ditadura de Pinochet, milhares de soldados foram mobilizados nas ruas e foi decretado um toque de recolher noturno em Santiago. Confrontos e saques se sucederam em Santiago e o estado de emergência se estendeu a várias regiões. O fato de o presidente ter pedido perdão e anunciado algumas reformas sociais — além de ter voltado atrás no aumento do preço do metrô — não impediu uma greve geral, exigindo “o retorno dos militares a seus quartéis” e respostas à pior crise social em três décadas.

No fim de janeiro, eventos de violência deixaram quatro mortos depois de um período de calma, salpicado de manifestações todas as sextas-feiras em Santiago, às vezes com confrontos. A pandemia suspendeu a mobilização por algum tempo, mas, neste mês, eles foram retomados. Em 2 de outubro, um adolescente de 16 anos caiu de uma ponte, depois de ter sido empurrado por um policial. Há uma semana, dezenas de milhares de chilenos se manifestaram no primeiro aniversário do protesto, um dia marcado por confrontos e pelo incêndio em duas igrejas.

 

Martin Bernetti/AFP - Prepartivos finais: dúvidas sobre a adesão dos chilenos ao pleito voluntário em tempos de pandemia
Javier Torres/AFP - 19/10/19 - Revolta teve início com o aumento da passagem do metrô e ganhou novas demandas já no dia seguinte

Diálogo comprometido

Em meio à situação de turbulência social, Bettina Horst, diretora de Políticas Públicas do Libertad y Desarollo, um think tank focado em estudos econômicos liberais, ligado à direita, lamenta o diálogo limitado e o pouco respeito pela diversidade. “Vai ser muito difícil, nesse clima, sentar e falar sobre um novo texto constitucional”, defende.

Horst explica que esse mal-estar estava fermentando há 10 ou 15 anos, quando escândalos de corrupção começaram a enfraquecer as instituições. Em seguida, o poder alternou entre democratas cristãos e socialistas, após a redemocratização em 1990. “A violência cristaliza de certa forma que certos setores estão dispostos a sair com violência às ruas para expressar sua discordância, e isso não é compartilhado pela grande maioria”, afirma.

Para a jornalista Mónica Gonzáles, fundadora do site de pesquisas Ciper e autora do livro La Conjura. Los mil y un días del golpe (de 2013, não editado no Brasil), as manifestações dos chilenos e o clamor por uma nova Constituição representam o fracasso da política. “A primeira crise que temos, a crise-mãe, a mais importante e a maior, é uma crise política”, disse, acrescentando:“Nós nos fizemos de bobos com a meritocracia sendo um sonho, mas é uma utopia. A grande fraude é aquela que derreteu os sonhos e esperanças de milhões de chilenos e o que explodiu foi isso”.

Em meio à pandemia, que, no Chile, contaminou quase 500 mil pessoas e causou a morte de mais de 13 mil, a participação eleitoral aparece como um dado-chave. Mais de 14,1 milhões de chilenos estão habilitados a votar no plebiscito voluntário. O funcionamento das seções eleitorais foi estendido em duas horas para reduzir as aglomerações e fixou-se um horário especial para os maiores de 60 anos.

No total, os centros de votação ficarão abertos durante 12 horas, a partir das 8h locais (mesma hora em Brasília). Desde que foi instaurado o voto voluntário, em 2013, o nível de abstenção aumentou, sobretudo entre os mais jovens. Contudo, espera-se que os jovens compareçam com mais peso no plebiscito de hoje. Afinal, foram os estudantes que iniciaram os protestos, há um ano. “Eles retratam um pouco dos problemas que a sociedade chilena tem: lucro na educação, um negócio que causou suicídios, gerações perdidas, endividamento generalizado de famílias pobres e uma classe média que empobreceu tentando pagar por carreiras que iriam permitir a escalada social. A educação como trampolim para escalar. E isso acabou se revelando uma fraude”, afirma Mónica Gonzáles.