Dez meses depois do primeiro caso confirmado de covid-19, na China, ainda são muitas as dúvidas sobre a imunidade ao Sars-CoV-2, uma questão fundamental para o desenvolvimento das vacinas. A morte relatada, ontem, de uma paciente de 89 anos que teve a doença duas vezes e a confirmação, na segunda-feira, do primeiro caso de reinfecção nos Estados Unidos aumentam as incertezas sobre o combate do organismo às mutações do vírus.
Especialistas afirmam que são ocorrências raras, e que não devem atrapalhar a eficácia de imunizantes, mas há outras questões que aguardam resposta, como a duração da imunidade adquirida e a gravidade da doença em uma infecção subsequente. Em agosto, cientistas publicaram o caso de um paciente de Hong Kong, infectado duas vezes, sendo que, da segunda, os sintomas foram brandos. Já o norte-americano de 25 anos, cujo caso foi descrito agora na revista The Lancet Infectious Diseases, enfrentou uma doença mais grave na segunda vez em que foi infectado, seis semanas depois da primeira.
A mulher que se tornou o primeiro paciente a morrer de covid-19 depois de ser reinfectada sofria de um tipo de linfoma não Hodgkin e já estava debilitada pelo tratamento do câncer raro, pois os medicamentos diminuíam a capacidade da medula óssea da idosa de 89 anos de produzir células de defesa. Na primeira vez que foi contaminada pelo Sars-CoV-2, ela teve febre e ficou hospitalizada por cinco dias. Dois meses depois, além da temperatura alta, a paciente apresentou falta de ar. Um exame genético revelou que o vírus tinha uma constituição genética diferente daquele que a infectou anteriormente.
À imprensa holandesa, a virologista Marion Koopmans, que acompanha casos de reinfecção no continente europeu com uma equipe da Universidade de Oxford, afirmou que a mulher morreu “com certeza por causa do coronavírus”, mas ressaltou que ela “também estava muito doente”. Segundo a médica, além dos cinco casos documentados e confirmados, outros 20 foram relatados pelo mundo. Na maioria deles, os sintomas são mais leves na segunda vez, disse. Citada pelo NL Times, da Holanda, Koopmans afirmou que é preciso entender se a reinfecção é algo característico da covid-19.
Até hoje, foram confirmados e publicados em revistas científicas cinco casos de reinfecção no mundo. Há outros sendo estudados, porém ainda não confirmados ou aguardam divulgação em revistas médicas. No Brasil, o Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-USP) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) trabalham com 20 pacientes que podem ter sido contaminados duas vezes. Os números são considerados muito baixos — desde dezembro de 2019, 37 milhões de pessoas testaram positivo para Sars-CoV-2.
Porém, não se sabe exatamente quantos indivíduos podem ter sido reinfectados, pois, para isso, é preciso obter amostras virais do primeiro e do segundo contágio e realizar o complexo sequenciamento genético, para comparação. Por isso, dificilmente esse tipo de testagem se tornará corriqueiro, fora dos estudos científicos.
Pesquisa
“Embora saibamos que a resposta imunológica protege as pessoas após a recuperação da covid-19, suspeitamos que essa proteção diminua com o tempo, tornando a reinfecção possível. Não sabemos quanto tempo dura essa imunidade e se ela difere entre as pessoas que tiveram infecções graves, leves ou assintomáticas”, reconhece Ivo Mueller, pesquisador da Universidade de Melbourne, na Austrália. Ele lidera um estudo com 300 pessoas que usará amostras de sangue para examinar em detalhes as respostas imunológicas ao Sars-CoV2. Os participantes, que tiveram a doença ou contato com algum infectado, serão acompanhados por 12 meses após a exposição por meio de amostras regulares de sangue e swabs de nariz e garganta.
“Compreender a imunidade à covid-19 é vital para o desenvolvimento de estratégias de vacinação. Isso também vai gerar uma maior conscientização e nos ajudar a controlar melhor esse vírus na comunidade”, acredita Mueller. “Se pudermos prever a forma como a imunidade ao vírus se desenvolve ao longo do tempo, se e quando as pessoas podem ser reinfectadas e se os sintomas são menos graves após a reinfecção, seremos capazes de planejar adequadamente e ficar à frente do vírus.”
Vanessa Bryant, pesquisadora do estudo, diz que, embora cientistas do mundo todo corram para compreender a pandemia, muitos fatores vitais permanecem desconhecidos, e a imunidade é um deles. “Algumas pessoas ficam gravemente doentes e precisam de hospitalização, enquanto outras são quase totalmente assintomáticas.” A duração da resposta imune é outra questão que os cientistas australianos querem entender. Estudos demonstraram que, em pessoas infectadas, o nível de anticorpos cai drasticamente pouco tempo depois da cura, mas outros trabalhos indicam que, mesmo com uma quantidade baixa dessas proteínas, o ex-paciente está protegido, devido à ação de células de memória do sistema de defesa, que são acionadas e podem, segundo uma pesquisa recente, permanecer por toda a vida.