Com apenas cinco minutos de atraso, o presidente republicano Donald Trump e o ex-vice democrata Joe Biden subiram ao palco da Case Western Reserve University, em Cleveland (Ohio), e não apertaram as mãos. Poderia ser uma prévia do clima nada amistoso que permeou o primeiro dos três debates antes das eleições de 3 de novembro, mas era apenas parte do protocolo de segurança sanitária. Constantes trocas de ofensas e interrupções dominaram os 90 minutos de discussões sobre seis assuntos específicos: a pandemia da covid-19, a Suprema Corte dos Estados Unidos, o racismo, o histórico dos dois candidatos, a economia e a integridade das eleições. Na reta final, Biden atacou o Brasil pelo desmatamento da Amazônia.
Trump tentou usar a presença de palco — legado dos tempos de apresentador de O aprendiz, entre 2004 e 2015 — e intimidar o adversário, que chegou a chamá-lo de “palhaço”. Mas Biden soube aproveitar-se das câmeras para contra-atacar. Em um dos momentos mais tensos, Trump disse que Hunter Biden, filho de Joe Biden, foi expulso das Forças Armadas por usar cocaína. “Isso não é verdade”, reagiu o democrata.
“O fato é que tudo o que ele disse até agora é simplesmente mentira. (…) Todo mundo sabe que ele é um mentiroso”, disparou Biden. O magnata republicano deixou a modéstia de lado. “Fui o melhor presidente, com a melhor economia da história do país”, afirmou, depois de ligar o adversário ao socialismo. Mais adiante, ao reagir às interrupções, Biden perdeu a paciência: “É difícil falar com este palhaço. Perdão, esta pessoa. (…) Você é o pior presidente que os EUA já tiveram”.
Já no primeiro tema, os dois partiram para o ataque, ao debaterem a nomeação da juíza conservadora Amy Coney Barrett para a vaga da falecida magistrada Ruth Bader Ginsburg. Trump garantiu que tem o direito de escolher quem quiser. “Temos uma indicada fenomenal, muito respeitada, uma acadêmica de elite muito boa. Ganhamos as eleições e temos o direito de indicá-la”, declarou. Por várias vezes, o moderador Chris Wallace, jornalista da emissora Fox News, precisou intervir.
Biden, por sua vez, disse que Trump deseja derrubar o Obamacare — plano de subsídio de atenção à saúde lançado pelo ex-presidente Barack Obama — e o acusou de não ter um projeto similar. “Este homem não sabe o que está falando”, alfinetou o democrata. Foi quando Trump denunciou um projeto socialista de Biden para a saúde pública. No segundo tema, mais tensão no ar. “São 200 mil mortes, 7 milhões de infectados ou 4% da população mundial, além de 10% das mortes. Milhares de pessoas, por dia, contraem a doença. As coisas são como são porque você é como é”, alfinetou Biden, ao responder sobre a pandemia da covid-19. “O presidente não tem um plano.”
O republicano devolveu com tom ríspido e em terceira pessoa: “Várias pessoas me disseram que o presidente Trump salvou várias vidas em nosso país e fez um trabalho fenomenal”. “ Você nunca teria feito o trabalho que realizei”, disse o magnata republicano. “Você foi um desastre”, rebateu Biden. Trump levou as acusações para o lado pessoal. “Não tem nada de inteligente em você”, disparou. “Fiz mais em 47 meses do que você em 48 anos, Joe”, acrescentou. No debate sobre a pandemia, ambos encenaram um momento cômico ao falarem sobre as máscaras. “Eu não uso uma máscara como (Biden), cada vez que você o vê, ele usa uma máscara. Ele poderia estar a dois metros daqui e aparece com a maior máscara que já vi”, ironizou Trump.
Em outra abordagem aguardada, Wallace perguntou a Trump se ele pagou US$ 750 em impostos, três anos atrás. “Paguei milhões de dólares em impostos de renda. Teve uma história dos jornais dizendo que paguei US$ 38 milhões em um ano e US$ 27 milhões em outro. Temos 180 páginas de notícias que mostram meus ativos”, respondeu. O moderador insistiu que Trump tergiversou. “Paguei milhões de dólares em 2017”, assegurou o republicano. Visivelmente exasperado ao ser acusado de desejar fechar a economia, Biden dirigiu-se ao rival: “Você vai se calar, homem?”.
O debate sobre divisões raciais nos EUA levou Trump a voltar a defender a lei e a ordem. “Este é um presidente que usa tudo como um apito de cachorro, para tentar semear ódio racista e divisão. Este homem não fez praticamente nada pelos negros”, disse o democrata. Na última pergunta do evento, Biden defendeu que os cidadãos norte-americanos votem da forma como desejarem, seja à distância, seja presencialmente. E disse que Trump busca amedrontar os eleitores, impedindo-os de votar, sob o pretexto do risco de fraude. O presidente pôs em xeque o fato de milhões de cédulas serem enviadas a vários lugares. “Isso vai ser uma fraude como nunca antes visto.”
Especialistas
Professor de história, jornalismo e estudos midiáticos da Rutgers University, David Greenberg avaliou ao Correio que nenhum dos candidatos teve atuação brilhante. “Isso provavelmente ajudará Biden. Trump dominou, mas com arrogância e com interrupções. Biden lutou para ser ouvido, mas quando o fez foi convincente e substantivo”, comentou. “Suspeito que a maioria dos telespectadores ergueu as mãos e desligou a tevê, ou deu de ombros.” Greenberg admitiu que o debate foi “caótico”. “Wallace foi incapaz de impedir Trump de importunar.”
Para David Dulio, diretor do Centro para Engajamento Cívico e cientista político da Universidade Oakland (em Michigan), o debate não atendeu à opinião pública. “Tudo começou muito caótico. Houve conversas contínuas. Eu me pergunto quantas pessoas ficaram enojadas e desligaram a tevê”, disse à reportagem. O especialista entende que os dois marcaram alguns pontos. “Biden fez um bom trabalho, ao falar diretamente à câmera; o público responde a isso. Trump é claramente mais forte quando se concentra na economia e foi capaz de criar um contraste em sua abordagem sobre covid, economia e Biden, sobre fechar ou abrir o país.”