Análises matemáticas feitas por cientistas austríacos mostram que a pandemia da covid-19 pode causar um declínio de curto prazo na expectativa de vida em muitas regiões do planeta. O estudo, publicado na última edição da revista científica Plos One, revela que taxas de 10% da prevalência da doença podem provocar a perda de um ano na média de tempo vivido em países com expectativa de vida considerada alta, como o Brasil. O efeito pode ser ainda mais significativo em áreas com expectativa de vida muito alta, como a Europa e a América do Norte. Os pesquisadores destacam que o controle da pandemia pode reverter esse fenômeno e que os dados servem como importante alerta dos efeitos poderosos do coronavírus na saúde global.
A expectativa de vida é uma medida usada como instrumento de análise do desenvolvimento humano. Ela é determinada com base em uma série de fatores, como melhor saúde, condições socioeconômicas e educação. “Ao longo do século passado, a expectativa de vida aumentou significativamente em muitas regiões do mundo. Nosso estudo fornece a primeira avaliação do impacto potencial do covid-19 nesse indicador tão comum”, diz ao Correio Guillaume Marois, principal autor do estudo e pesquisador do International Institute for Applied Systems Analysis (IIASA), na Áustria.
Marois e colegas do IIASA construíram um modelo matemático que simulou a probabilidade de um indivíduo se infectar pelo coronavírus, de morrer pela infecção e o risco de óbito por outra causa durante o período de um ano. A equipe levou em consideração as diferentes taxas de letalidade da doença para faixas etárias distintas.
As análises foram feitas considerando cinco regiões, divididas com base na expectativa de vida atual: Europa e América do Norte (expectativa de vida muito alta, de 79,2 anos), América Latina e Caribe (expectativa alta, de 76,1 anos), sudeste asiático (expectativa média, 73,3 anos) e África Subsaariana (expectativa baixa, de 62,1 anos). Por meio dos cálculos, os pesquisadores descobriram que, com taxas de prevalência extremamente baixas na população, a pandemia de covid-19 não afetaria a expectativa de vida.
Porém, taxas de prevalência de apenas 2% já poderiam causar queda na taxa de países em que a média é muito alta. Quanto maior a incidência, pior a previsão. “Com prevalência de 10%, a perda na expectativa de vida é, provavelmente, superior a um ano em países com expectativa de vida muito alta. Com 50%, isso se traduziria em três a nove anos de vida perdidos”, explica o autor do estudo. Nas regiões de alta expectativa de vida, em que o Brasil está inserido, os dados também chamam a atenção. “Calculamos que, se a taxa de prevalência chegar a 10%, a perda na expectativa de vida seria de cerca de um ano. Em 50%, a perda seria entre três a oito anos”, diz Guillaume Marois.
Nas regiões menos desenvolvidas, o impacto é menor porque já existe uma sobrevida mais baixa. Para que a mesma queda de um ano ocorra na África Subsaariana, a prevalência da doença teria que ser de 25%. Marois ressalta que, como o vírus não afeta as sub-regiões igualmente, a prevalência pode atingir níveis muito altos em algumas delas. “Portanto, em um país como o Brasil, os estados mais gravemente afetados podem experimentar perda muito mais perceptível em sua expectativa de vida”, ilustra.
Mais idosos
O cientista enfatiza que o cenário muda com o fim da crise sanitária. “Mesmo nos estados mais afetados, a expectativa de vida provavelmente se recuperaria quando a pandemia acabasse.” A mesma observação é feita por Lucas Vargas, clínico-geral e coordenador da Clínica Médica do Hospital Santa Lúcia Norte, em Brasília. O especialista brasileiro avalia que os dados do estudo austríaco precisam ser examinados com um olhar crítico. “Os impactos estão previstos enquanto a pandemia durar, não é algo que perdurará. Outro ponto importante é que os declínios são maiores em países que já têm uma expectativa de vida muito alta, como é o caso dos Estados Unidos e de regiões da Europa. Nesses locais, temos uma população mais idosa. Então, para eles, realmente o tempo de vida pode vir a diminuir devido à covid-19”, justifica. “Em países como o Brasil, por exemplo, o impacto é menor, como o próprio estudo mostra.”
Maisa Kairalla, coordenadora da Comissão Especial Covid da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), acredita que o estudo mostra dados percebidos também nos consultórios. “Muitos pacientes mais velhos têm esquecido de fazer tratamentos que são importantes, e isso se reflete nas taxas de mortalidade. Por mais que a causa da morte não seja a covid-19, ela influencia diretamente. Eu perdi dois pacientes que morreram em casa porque acabaram deixando de ir se tratar”, conta.
A médica ressalta que a orientação de isolamento ainda é a mesma, principalmente para pessoas idosas, que fazem parte do grupo de risco, mas ressalta que é preciso ter um olhar mais cuidadoso para pacientes que precisam de cuidados médicos maiores. “Temos que ver a gravidade dos problemas que essas pessoas enfrentam. É importante ficar alerta para a necessidade de consultas e tratamentos que não podem ser feitos em casa. Outro ponto também é o estado mental, que é muito afetado durante esse período e pode afetar outros problemas já existentes."