Mais um capítulo de duas décadas de instabilidade política no Peru foi protagonizado, ontem, pelo Congresso do Peru. Por 65 votos a favor, 36 contra e 24 abstenções, os legisladores aprovaram uma moção para destituir o presidente Martín Vizcarra por “incapacidade moral”. O chefe de Estado peruano é acusado de pedir a assessores que mentissem em investigação parlamentar sobre um contrato polêmico com o cantor Richard Cisneros, que se identificava na mídia como conselheiro do governo. “Foi aprovada a moção de destituição do senhor presidente da República”, anunciou o chefe do Congresso, Manuel Merino, após a votação. Vizcarra terá de apresentar sua defesa, na tribuna do Congresso, na próxima sexta-feira, às 9h (11h em Brasília). No mesmo dia, os legisladores vão se submeter a uma nova votação para decidir sobre a destituição ou não do mandatário.
São necessários 87 votos para o afastamento definitivo de Vizcarra, que seria substituído por Merino, como determina a Constituição. Isso porque Vizcarra era vice de Pedro Pablo Kuczynski, que salvou-se de uma moção de confiança e foi forçado a abandonar o poder, em março de 2018. “Não vou renunciar, não vou correr”, disse Vizcarra, durante pronunciamento em rede nacional de televisão, na noite de quinta-feira. Ele denunciou “golpe de Estado” e “conspiração contra a democracia”. Também pediu ao Congresso que “analise a situação com cautela, com responsabilidade e tome a decisão que julgar apropriada”.
O ex-presidente Ollanta Humala (2011-2016) demonstrou solidariedade a Vizcarra e pediu que o chefe de Estado permaneça no cargo até 28 de julho de 2021, quando encerra o seu mandato. “Esta é uma crise institucionalizada provocada por círculos próximos ao presidente e perigosamente utilizada pelo Congresso. Não cabe vacância. Vizcarra deve continuar, cuidar da saúde, reativar a economia e garantir eleições limpas”, tuitou Humala.
“É uma crise generalizada. Precisamos revisar os áudios apresentados e interrogar Vizcarra. O presidente é suspeito de incapacidade moral por ter buscado informações no Congresso, a fim de beneficiar um grupo próximo a ele”, afirmou ao Correio, por telefone, Ricardo Burga, deputado pelo partido Acción Popular. “Vizcarra teria atuado para beneficiar-lhes. Cisneros, por exemplo, assinou uma ordem de serviço equivalente a R$ 10 mil e ganhou redes de contatos dentro da Casa de Pizarro, o palácio do governo. Os áudios, inclusive, sugerem uma influência de Cisneros sobre o presidente. Isso precisa ser investigado”, defendeu.
Em maio passado, a imprensa perunana divulgou que, em plena pandemia, o Ministério da Cultura teria contratado Cisneros para as funções de palestrante e apresentador, em contratos marcados por irregularidades.
Isolamento
Milagros Campos Ramos — professora de direito constitucional e de política da Pontificia Universidad Católica del Peru — afirmou ao Correio que as denúncias contra Vizcarra são “relevantes”. “No fim das contas, estamos diante de um presidente muito solitário, pelo fato de não ter partido, nem bancada. Por isso, caso se arme uma coalizão contrária a ele no Congresso, é muito possível que seja afastado”, explicou. Ela lembra que o parlamento foi eleito em janeiro e começou suas funções, de forma efetiva, em março. “Trata-se de um Legislativo bastante fragmentado; não existe nenhum congressista próximo ao governo”, comentou. “O Peru conta com um sistema presidencialista bastante ‘parlamentarizado’, com interpelações pelo Congresso, censuras e moções de confiança obrigatórias.”
Nos áudios mencionados, Vizcarra supostamente pede aos assessores para mentirem sobre o número de ocasiões em que o cantor Richard Cisneros esteve no palácio. “Primeiro, é preciso ver o que é; depois, o que vai ser dito”, afirma o presidente em uma das gravações. No áudio, as assessoras Miriam Morales e Karem Roca mencionam cinco visitas do artista à Casa de Pizarro. “É preciso dizer que ele entrou duas vezes”, em vez de cinco, pede Vizcarra. “O que fica claro é que nessa investigação todos estamos envolvidos”, acrescenta o presidente, na gravação.
O escândalo envolvendo Vizcarra tem elementos similares aos que marcaram a queda de líderes peruanos nas últimas duas décadas. Alberto Fujimori (1990-2000) e Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018) caíram depois que vídeos mostraram como aliados subornavam e faziam compromissos para permanecer no poder. Depois da renúncia de Fujimori, o Peru enfrentou uma série de crises durante o governo de Alejandro Toledo (2001-2006), que foi preso em julho de 2019 por corrupção. Em 2018, Kuczynski também entregou o cargo, em meio ao pagamento de milhões de dólares em propina, por parte da construtora brasileira Odebrecht, a funcionários e políticos peruanos entre 2005 e 2014. Em abril de 2019, o ex-presidente Alan García matou-se quando a polícia tentou prendê-lo, também no caso Odebrecht.