Eles estão amparados pela Segunda Emenda da Constituição, texto que considera inalienável o direito à posse de armas. Também usam a internet para uma quase devoção a fuzis, além de se engajarem na apologia à violência e no discurso político radical. Os chamados “vigilantes” e as “milícias” voltaram às manchetes nos Estados Unidos. Em 26 de agosto, três dias depois de Jacob Blake ser baleado sete vezes nas costas pela polícia, protestos antirracismo explodiram em Kenosha (Wisconsin). Grupos armados chegaram do estado vizinho de Illinois e entraram em confronto com os ativistas do movimento Black Lives Matter (BLM, “Vidas negras importam”). Kyle Rittenhouse, 17 anos, disparou um AR-15 contra os manifestantes, matando dois deles e ferindo um terceiro. Ele fazia parte da milícia Guarda de Kenosha. No dia 29, um confronto entre o grupo de extrema-direita Patriot Prayer e os ativistas do BLM terminou com a morte de Aaron J. Danielson, 39, que usava um boné com a insígnia da milícia. Formadas por civis e veteranos, as facções armadas apossaram-se do slogan “lei e ordem” difundido por Donald Trump e passaram a ameaçar os negros.
Na última quinta-feira, dois membros da Milícia da Segunda Emenda 417 foram presos ao tentarem viajar do Missouri para Kenosha transportando armas. De acordo com a organização não governamental Southern Poverty Law Center, somente neste ano, as milícias foram flagradas 55 vezes em protestos organizados pelo BLM. A mesma ONG identificou 191 milícias ativas contrárias ao governo em operação nos Estados Unidos, no ano passado. Desde a ascensão de Trump ao poder, especialistas registraram um fenômeno curioso: muitos desses grupos passaram a apoiar o presidente, principalmente em relação à temática racial.
Treinamento
Cofundadora do Projeto Global contra Ódio e Extremismo, Heidi Beirich explicou ao Correio que Kyle Rittenhouse e outros extremistas de direita costumam estar fortemente armados. “Geralmente, eles se envolvem em exercícios de treinamento militar e têm um tradicional ódio pelo governo federal. Isso mudou com a chegada de Trump à Casa Branca; as milícias adoram o republicano”, comentou. Ela lembra que os integrantes de milíciais envolveram-se em graves atos de violência no passado. “Timothy McVeigh, que explodiu um prédio federal em 1995, era fã de milícias e era supremacista branco. Membros do Boogaloo Bois, outra milícia nova, participaram do assassinato de dois policiais, na Califórnia, e foram presos por tentarem detonar uma bomba em um protesto do BLM, em Las Vegas.”
Beirich disse acreditar que os milicianos são abastecidos pela retórica de Trump. “O presidente encorajou as manifestações contra o distanciamento social, entre abril e maio. Também recusou-se a condenar Kyle Rittenhouse. Além disso, os constantes apelos pela lei e pela ordem e as críticas aos protestos encorajam as milícias”, observou. A estudiosa adverte que uma ala do Partido Republicano tem apoiado a retórica de Trump e se negado a condenar a violência da extrema-direita.
Robert Futrell — professor de sociologia da Universidade de Nevada (Las Vegas) — lembra que os vigilantes (milicianos que buscam fazer justiça por conta própria) são oriundos de redes de grupos patriotas, de milícias e de organizações de supremacistas brancos. “Ao participarem de protestos contra o racismo, eles afirmam que seu papel é fazer cumprir a ordem e a lei, quando percebem que as forças policiais são incapazes de mantê-las. De muitas maneiras, eles exploram essas cenas de protestos para encenar indignação moral contra aqueles que definem como bandidos, desordeiros ou saqueadores. Isso é algo problemático pelo fato de a recente onda da mobilização de milícias ter abraçado ideias racistas, queixas anti-imigrantes ilegais e atitudes antiesquerda”, afirmou à reportagem.
Alguns aceitaram a ideia de uma guerra civil para livrar os EUA de seus principais problemas, os quais definem como negros, imigrantes ilegais e movimentos antifascismo. “Eles temem que essas categorias minem Trump e seus esforços de ‘tornar a América grande novamente’”, disse Futrell.
Segundo ele, durante o governo de Barack Obama, as milícias temiam que o Executivo interferisse na vida do cidadão, por meio da medicina socializada, do controle de armas e do limite à liberdade de expressão. “Agora, veem o presidente com um aliado e concentram sua raiva na esquerda e em comunidades vulneráveis”, disse. Em mensagens no Twitter, Trump tem apregoado a proximidade de uma guerra civil e demonstrado aval à extrema-direita. Para Futrell, são sinais profundamente impactantes para as milícias, com efeito de encorajamento de suas ações.