TESOUROS MODERNOS

Cientistas usam técnicas em 3D e tomografia para desvendar múmias e fósseis

Avanços em técnicas de pesquisa, como a tomografia computadorizada e a produção de imagens 3D usando raios X, permitem análises detalhadas de fósseis e artefatos antigos. Cientistas comemoram novas descobertas e a possibilidade de aumentar a preservação das peças

Paloma Oliveto
postado em 07/09/2020 06:00 / atualizado em 07/09/2020 16:33
 (crédito: Tees Archaeology/Divulgação)
(crédito: Tees Archaeology/Divulgação)

Se Indiana Jones tivesse vivido no século 21, o personagem criado por Steven Spielberg poderia trocar o célebre chicote por um arsenal de dispositivos de imagem. Embora a escavação ainda seja peça essencial das descobertas arqueológicas e paleontológicas, o estudo de apetrechos e fósseis foi facilitado por tecnologias que, além de possibilitarem uma visualização mais detalhada dos objetos, permitem estudá-los sem o risco de danificar esses tesouros do tempo.

Na semana passada, pesquisadores da Universidade de Bristol, na Inglaterra, publicaram um estudo no qual revelam importantes rituais místicos da Idade do Bronze, descobertos graças à tomografia computadorizada, o mesmo exame que as pessoas fazem para que os médicos visualizem órgãos internos. Esse método, aliado à datação por radiocarbono, trouxe à luz um costume macabro, mas que, aparentemente, era uma forma de homenagear entes queridos 4,5 mil anos atrás, na região em que hoje fica a Grã-Bretanha.

O que os cientistas descobriram foi que as comunidades da época tinham o hábito de retirar partes do corpo dos mortos e guardar com elas. “Mesmo nas sociedades seculares modernas, os restos mortais são vistos como objetos particularmente poderosos, e isso parece ser verdade para as pessoas da Idade do Bronze. No entanto, eles tratavam e interagiam com os mortos de maneiras que são inconcebivelmente macabras para nós, hoje”, afirma o autor principal do artigo publicado na revista Antiquity, Thomas Booth, que realizou o trabalho de datação por radiocarbono na Escola de Química da universidade.

Depois de determinar a idade dos restos humanos e dos artefatos mantidos com eles, os pesquisadores descobriram que muitos foram enterrados tempos depois da morte. De acordo com Booth, a tradição da época consistia em reter uma parte do corpo, que tanto poderia voltar à sepultura quanto ser guardada como relíquia. O cientista afirma que não eram todos os mortos que mereciam esses cuidados, apenas pessoas importantes para a comunidade ou para as famílias.

Um dos casos mais curiosos foi encontrado em Wiltshire, na Inglaterra. Um osso da coxa foi trabalhado para fazer, com ele, um instrumento musical. Nesse caso, a peça foi devolvida ao túmulo. O artefato, cuidadosamente esculpido e polido, foi encontrado com outros itens, como machados de pedra e bronze, uma placa de osso, uma presa e um objeto de ponta cerimonial único. Todos são exibidos no Museu de Wiltshire.

“Embora fragmentos de ossos humanos tenham sido incluídos como bens fúnebres com os mortos, eles também foram mantidos nas casas dos vivos, enterrados sob o chão das casas e até mesmo colocados em exibição”, conta a professora Joanna Brück, investigadora principal do projeto. “Isso sugere que as pessoas da Idade do Bronze não viam os restos mortais humanos com a sensação de horror ou nojo que podemos sentir hoje.”

Varredura avançada

Para detalhar o estudo, os cientistas valeram-se da microtomografia computadorizada (micro-TC), uma técnica de imagem 3D que utiliza raios X para ver o interior de um objeto, fatia por fatia. Ela é parecida à tomografia hospitalar, mas trabalha em pequena escala, com resolução muito mais aumentada. As amostras podem ser visualizadas com tamanhos de pixel tão pequenos quanto 100 nanômetros, e objetos podem ser digitalizados com até 200mm de diâmetro.

Os escâneres de micro-TC capturam uma série de imagens planares de raios X em duas dimensões e reconstroem os dados em cortes transversais, também em 2D. Essas fatias podem ser posteriormente processadas em modelos tridimensionais e até mesmo impressas como objetos físicos em impressoras 3D. Dessa forma, é possível revelar as características internas de um objeto. A tecnologia fornece informações volumétricas sobre a microestrutura, de forma não destrutiva. Por isso, tem se mostrado uma aliada de estudos paleontológicos e arqueológicos.

No estudo britânico, a avaliação por imagem permitiu observar as alterações microscópicas no osso produzido por bactérias, indicando como os restos mortais foram tratados durante a decomposição. “A varredura de microtomografia computadorizada sugere que esses ossos vieram de corpos que foram tratados de maneira semelhante ao que vemos em restos humanos da Idade do Bronze em geral. Alguns foram cremados antes de serem separados, ossos foram exumados após o sepultamento e também descarnados ao serem deixados para se decompor no solo”, diz Booth.

De acordo com ele, já existem evidências de que as pessoas que viviam na Grã-Bretanha durante a Idade do Bronze praticavam uma série de ritos funerários, incluindo sepultamento primário, escarnação, cremação e mumificação. No entanto, essa pesquisa revela que os mortos foram encontrados não apenas em um contexto funerário, mas que restos mortais eram regularmente mantidos e circulavam entre os vivos.

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Exames com mais definição

 (crédito: Universidade de Houston/Divulgação)
crédito: Universidade de Houston/Divulgação

Importante ferramenta de pesquisas médicas e arqueológicas, a microtomografia computadorizada (micro-CT) emite radiação em excesso. Mini Das, cientista da Universidade de Houston, tenta contornar o problema e melhorar a resolução e o contraste das imagens 3D de pequenos espécimes.

Ela desenvolveu teoria, instrumentação e algoritmos para imagem de contraste de fase espectral (PCI). A combinação, afirma, permite o uso de doses muito mais baixas de radiação, ao mesmo tempo em que fornece mais níveis de detalhe da imagem.

“Os sistemas atuais de raios X e tomografia computadorizada têm limitações inerentes de contraste. Muitas vezes, um tecido denso pode ser confundido com câncer”, diz Das. “Mesmo se você aumentar a dose de radiação, há um limite para o que se pode ver. Além disso, o ruído da imagem torna-se significativo ao aumentar a resolução para visualizarmos detalhes finos, muitas vezes necessários ao digitalizar pequenos objetos.”

O PCI detecta como os raios X se dobram ou refratam, principalmente na interface entre os tecidos, fornecendo uma quantidade maior de contraste entre os diferentes tipos de teciduais. Também mede absorção e mudanças de fase da transmissão de raios X pelo corpo.

“Como a luz visível, esses raios exibem o que é chamado de natureza dual — comportam-se tanto como partículas, chamadas fótons ou pacotes de luz, quanto como ondas. Os métodos de imagem de fase capturam informações relevantes para a natureza das ondas dos raios X, ao contrário dos sistemas de imagem convencionais encontrados nas clínicas hoje”,compara Das.


Dados microscópicos da fabricação de objetos

 (crédito: Lbova L./2020/Divulgação)
crédito: Lbova L./2020/Divulgação

Graças à tecnologia moderna, pesquisadores da Universidade Federal da Sibéria e da Universidade Estadual de Novosibirsk desvendaram uma técnica usada, há 20 mil anos, para esculpir ornamentos e esculturas em marfim. A equipe estudou um colar de contas e uma estatueta de animal encontrados no sítio paleolítico de Ust-Kova, na Sibéria. Há mais de 2 mil séculos, os moradores da região usavam brocas, cortadores e até mesmo lâminas de nivelamento. As características incomuns de alguns dos itens evidenciam a maestria dos artesãos. O artigo sobre o estudo foi publicado na conceituada revista Archaeological Research in Asia.

Arqueólogos exploram o local desde meados do século 20, mas a maior parte dos trabalhos de escavação ocorreu entre 1980 e 2000. Com base nos resultados da datação por radiocarbono, estipulou-se que o assentamento tem mais de 20 mil anos. De todas as descobertas, a equipe considera as estatuetas de animais as mais interessantes. Eles também encontraram vários ornamentos e ferramentas feitas de marfim de mamute. No entanto, até recentemente, a tecnologia da fabricação desses objetos era desconhecida.

“Estudamos vários itens de marfim de mamute encontrados em Ust-Kova: uma estatueta de mamute, uma escultura e pulseiras e contas de diferentes tamanhos que foram criadas há cerca de 24 mil anos”, conta Nikolay Drozdov, pesquisador da Universidade Federal da Sibéria. Curiosamente, a tecnologia atual permitiu, agora, compreender a tecnologia de milhares de anos atrás. “Realizamos análises microscópicas detalhadas de cada objeto para identificar as ferramentas usadas em sua fabricação pelas marcações que deixaram”, diz Drozdov.

Passo a passo

A equipe processou as imagens microscópicas da estatueta de mamute com uma ferramenta de imagem digital chamada DStrech. O plug-in torna visível pictogramas praticamente invisíveis a olho nu e, por isso, também é muito utilizado na análise de imagens rupestres. As reconstruções mostravam marcas deixadas por diferentes ferramentas. De acordo com os cientistas, primeiro um artesão teve que quebrar uma presa de mamute em segmentos. Depois, placas menores foram transformadas em contas: o mestre cortou-as em retângulos e fez um furo, no centro de cada peça, usando uma broca de pedra.

Peças maiores foram usadas para criar esculturas de animais. Para representar um mamute, o artesão esculpiu uma cabeça e pernas com uma lâmina niveladora e, então, removeu o excesso do osso com um cortador. Depois que a estatueta estava pronta, ela foi decorada com um padrão de entalhe para imitar olhos e cabelos.

A equipe também analisou a composição química dos resultados. Eles estavam interessados nos traços de pigmento vermelho-escuro na superfície da escultura. Descobriram que os antigos artesãos costumavam pintar muitos de seus artefatos com manganês e magnésio (provavelmente extraídos de rochas salinas situadas não muito longe).

A estatueta de mamute foi pintada com um pigmento vermelho de um lado e com um preto do outro. Na mitologia do povo Ust-Kuva, o vermelho era símbolo de vida e o preto significava a morte. Os pesquisadores também encontraram várias camadas de pigmento nas contas. Eles presumiram que os ornamentos já estavam em uso há muitos anos e deveriam ser consertados regularmente, demonstrando que os povos da Sibéria tinham uma tecnologia avançada há mais de 20 mil anos. (PO)

"Realizamos análises microscópicas detalhadas de cada objeto para identificar as ferramentas usadas em sua fabricação pelas marcações que deixaram”
Nikolay Drozdov, pesquisador da Universidade Federal da Sibéria


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