Clima instável na frente externa
À margem da crise múltipla associada ao impacto da covid-19, o governo Bolsonaro pode distinguir, no cenário internacional ainda turvo pela pandemia, um desafio com prolongamentos em diferentes planos da frente diplomática. Trata-se do questionamento insistente de parceiros — não apenas governos e instituições multilaterais, mas também investidores privados — à política ambiental. Em particular, está na mira o desmatamento na Amazônia.
Em diferentes ocasiões, o presidente optou pela linha do confronto. Questionou dados, denunciou Ongs, afastou funcionários tidos por autores de relatórios desfavoráveis, encarnou o discurso da soberania nacional. A sombra da “dívida ambiental” do país, porém, entra nos cálculos políticos do Planalto e do Itamaraty entre os fatores que tornam acidentado o campo de manobra na frente externa.
Mar revolto
Não terá passado despercebido o recado da chanceler da Alemanha, Angela Merkel (foto), no exercício do comando político rotativo da União Europeia. Porta-voz da direita clássica, que mantém maioria nos foros do bloco, ela acenou sem rodeios com a possibilidade de que não seja ratificado o acordo comercial concluído no ano passado com o Mercosul.
Ao fim de década e meia de negociações que, por vezes, pareciam fadadas ao fracasso, o acordo deslanchou em momento mais do que oportuno — para ambas as costas do Atlântico. A mais populosa área de livre comércio do mundo representa, para o Mercosul, a primeira parceria de vulto com um sócio da divisão de elite da economia global. Para a UE, o quarteto liderado por Brasil e Argentina constitui um mercado precioso para a indústria e o setor de serviços.
Presente de grego
Pela perspectiva brasileira, o anúncio da conclusão do acordo chegou como presente inesperado no primeiro ano de mandato de um presidente pouco afeito ao métier. A diplomacia profissional estava mergulhada nas conversações, recém-retomadas, quando Bolsonaro tomou posse, depois de ter sugerido, em campanha, que poderia deixar de lado o Mercosul em favor de uma política comercial baseada em acordos bilaterais.
Entre hermanos
Planalto e Itamaraty festejaram o troféu, também pelo impacto sobre a dinâmica política do bloco. Depois de se pronunciar publicamente sobre a disputa presidencial na Argentina, em favor da reeleição do direitista Mauricio Macri, Bolsonaro digeriu mal o retorno do peronismo à Casa Rosada. Não foi à posse de Alberto Fernández e ameaçou deixá-lo “de canto”, isolado em meio a três sócios com elevada afinidade política.
Não por acaso, partiu de Buenos Aires o primeiro esboço de resistência ao acordo com UE. Rodríguez deixou em suspenso a indispensável ratificação pelo Congresso argentino. As reticências lançadas por Angela Merkel fazem do processo, agora, uma armadilha para a bolsodiplomacia.
Mão dupla
Sem um desfecho delineado, a nova temporada da novela UE-Mercosul ensaia os primeiros passos no clima incerto que se prenuncia para o pós-pandemia. Uma via comercial expressa de mão dupla no eixo transtlântico tem potencial para irrigar as economias de ambos os lados, necessitadas de fôlego para engatar a recuperação.
No contexto europeu, a abertura para a América do Sul entra como variável na complexa equação montada para resolver os impactos do Brexit. O sofrido processo de saída do Reino Unido, por sinal, ajudou a abrir a janela de oportunidade para a conclusão do acordo. Surge, agora, como incógnita a sombra de uma maratona desgastante para a ratificação do texto pelos parlamentos dos 27 países-membros.
Caça com gato
Nesta semana, foi a vez de o GDF abrir entendimentos com a Embaixada da Rússia para iniciar testes com a vacina desenvolvida no país contra a covid. A Sputnik 5 foi batizada com o nome dos satélites artificiais que deram à então União Soviética a liderança na corrida espacial com os EUA — uma das frentes em que as duas superpotências travaram a Guerra Fria.
Desde o início da pandemia, chama a atenção dos emissários e observadores externos a desenvoltura com que diferentes Estados brasileiros desenvolvem uma diplomacia própria em busca de insumos para enfrentar a pandemia — começando por respiradores e EPIs. Mais até do que essa movimentação, foi notada a ausência de um esforço coordenado por parte do governo federal.
Na comparação feita por um diplomata, é como se os governadores, diante das urgências cotidianas da crise sanitária e das idas e vindas no comando da pasta federal da Saúde, tenham buscado conselho no ditado segundo o qual “quem não tem cão caça com gato”.