A decisão do uruguaio Luis Almagro, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), de não renovar o mandato do brasileiro Paulo Abrão no posto de secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) abriu grave crise na entidade. Alinhada aos governos de Donald Trump (Estados Unidos) e Jair Bolsonaro (Brasil), a OEA anunciou ter recebido “dezenas” de denúncias funcionais contra Abrão, que ocupava o cargo desde 27 de julho de 2016 e pleiteava novo mandato para o período 2020-2024. Presidente da CIDH, o mexicano Joel Hernández afirmou à agência France-Presse que continua considerando Abrão secretário-executivo. “Abrão é o funcionário responsável pela Secretaria-Executiva. A nomeação da subsecretária, Claudia Pulido, visa exclusivamente a atender às questões de caráter administrativo”, assinalou Hernández.
Mais cedo, por meio de extenso comunicado, a CIDH expressou o mais “profundo repúdio” e seu alarme “diante de um sério ataque contra sua independência e autonomia”. A nota lembra que a Comissão decidiu por unanimidade renovar o mandato de Abrão, em sessão realizada entre 8 e 9 de janeiro passado, no México. Em 15 de agosto, Almagro notificou a CIDH, “sem consulta prévia”, de sua decisão. De acordo com a Comissão, isso constitui “um flagrante desrespeito à sua independência e autonomia, buscando a separação de fato do secretário-executivo, e anular a decisão de renovação adotada oito meses antes pela CIDH”.
Também por meio de comunicado, Almagro explicou que, “infelizmente, nenhum progresso foi feito no processo de designação do secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), devido à existência de dezenas de denúncias funcionais apresentadas aos mecanismos institucionais responsáveis pela garantia e pela promoção dos direitos dos funcionários da OEA e por tramitar, neste caso, as queixas reincidentes sobre possíveis violações de direitos”. O secretário-geral classificou de “completa falta de ética” e algo “digno de repúdio” a tentativa de tentar provocar “confusão a respeito do que constitui a responsabilidade e a prestação de contas funcional individual de um ou mais funcionários, e do que constitui a autonomia da CIDH”.
Relatórios
A não renovação do mandato do brasileiro teria sido decidida por Almagro com base em dois relatórios: um preparado pela Secretaria de Assuntos Jurídicos da Secretaria Geral da OEA e outro elaborado pela “ombudsperson” da organização, Neida Pérez. Fontes da OEA confirmaram à France-Presse que Neida recebeu mais de 60 denúncias contra Abrão, que incluem a “manipulação de concursos e contratações”. “Essas denúncias não são impedimento para que Almagro renove o contrato do secretário-executivo Abrão”, protestou o presidente da CIDH.
Hernández garante que estava a par das queixas feitas à ombudsperson, com quem o plenário da Comissão se reuniu em outubro. Ele acrescentou que, desde o ano passado, Abrão seguia as recomendações. “Não podemos aceitar que um documento apresentado cinco dias antes do fim do contrato sirva de pretexto para não concedê-lo.”
O conteúdo do relatório de Neida Pérez recebeu a classificação de “confidencial”. “É inadmissível que se tente usar um relatório institucional sigiloso da Ouvidoria ou a informação de que se inicia uma investigação administrativa como base para decidir sobre a renovação administrativa da Secretaria Executiva da CIDH, em clara violação às reiteradas regras do sistema”, afirma a Comissão. Ao fim do comunicado, a CIDH reitera o voto de confiança na renovação do mandato de Abrão e expressa a disposição de dialogar com Almagro e com todos os órgãos da OEA.
Até o fechamento desta edição, os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, e o Partido dos Trabalhadores (PT), não tinham se pronunciado sobre o assunto. O Correio tentou contato com Abrão por e-mail e pelas redes sociais, mas não obteve resposta. O presidente Jair Bolsonaro e o Ministério das Relações Exteriores também preferiram o silêncio. Diretor executivo da Human Rights Watch para as Américas, José Miguel Vivanco denunciou que a decisão de Almagro representa “um grave retrocesso na prática da OEA e mina a autonomia da CIDH”. “A decisão de Almagro danifica a credibilidade da CIDH como organismo independente.”
A Comissão Permanente de Direitos Humanos da Nicarágua (CPDH) — país onde Abrão trabalhou na coleta de violações dos direitos humanos — enviou carta a Almagro pedindo que OEA reconsidere sua decisão. “Esta posição não contribui para o bom funcionamento da institucionalidade e dá descontinuidade aos processos iniciados para a defesa dos direitos humanos.”
FRASE
Eva Hambach/AFP - 19/12/19
É totalmente antiético e repudiável tentar criar confusão em relação ao que constitui a responsabilidade e prestação de contas funcional (...) e o que constitui a autonomia da CIDH”
Luis Almagro, secretário-geral da OEA
Personagem da notícia
“Fiscal” de violações no continente
Durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e de Dilma Rousseff (2011-2016), Paulo Abrão, mineiro de Uberlândia, chefiou a Comissão de Anistia. O trabalho à frente do organismo — instalado em 2001 no Ministério da Justiça para analisar reparação econômica e moral às vítimas da ditadura militar no Brasil — creditou-lhe ao posto de secretário-executivo da Comissão Interamericana de Diretos Humanos (CIDH), ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA).
Abrão assumiu a função em 27 de julho de 2016. Nos últimos anos, o brasileiro monitorou e documentou violações aos direitos humanos em vários países das Américas. Em outubro passado, chefiou uma missão de observadores internacionais à Bolívia, depois de dois massacres de simpatizantes do ex-presidente Evo Morales. Dois meses antes, liderou uma comitiva em visita a albergues para imigrantes ilegais na fronteira entre Estados Unidos e México. Em maio de 2018, integrou uma missão da OEA que visitou a Nicarágua para colher depoimentos sobre a violenta repressão a manifestantes contrários ao presidente Daniel Ortega.
Homem negro baleado pela polícia perde movimentos
Jacob Blake Jr., o homem negro de 29 anos que foi baleado sete vezes nas costas por policiais de Kenosha (Wisconsin), perdeu os movimentos da cintura para baixo. “Será um milagre para Jacob Blake Jr. voltar a caminhar”, lamentou Ben Crump, ativista dos direitos civis e advogado da família. “Esperamos por um milagre. Mas o diagnóstico agora é que ele está paraplégico. As balas lesionaram sua medula espinhal e despedaçaram algumas de suas vértebras”, acrescentou. A tentativa de assassinato contra Blake ocorreu no domingo e foi filmada por uma testemunha-chave. Nas imagens, policiais abordam a vítima, que entra em uma SUV onde estavam seus três filhos, de 3, de 5 e de 8 anos.
Aos gritos, os agentes se aproximam e disparam de forma ininterrupta. Blake cai sobre o volante do carro, que dispara a buzina, enquanto uma mulher entra em desespero. “Essas três crianças pequenas terão graves problemas psicológicos pelo resto de suas vidas. Essa dor é real, América. Isso é o que suportamos diariamente”, advertiu Crump. “Eles atiraram contra meu filho por sete vezes. Sete vezes, como se ele não significasse nada. Mas, meu filho importa. Ele é um ser humano e significa algo”, desabafou o pai Jacob Blake, em pronunciamento à imprensa.
“O que justifica estes tiros? O que justifica fazê-lo na frente dos meus netos?”, revoltou-se o pai, mais cedo, em declarações para o jornal Chicago Sun Times. Herman Poster, primo da vítima, disse ao site The Daily Beast que Jacob Blake voltou a ser submetido a uma cirurgia na manhã de ontem. Os médicos “tentam fazer reagir alguns nervos”, afirmou.
O atentado contra Blake reativou a revolta nas ruas dos Estados Unidos, com milhares de pessoas em várias cidades exigindo justiça. Manifestantes antirracistas e contra a violência policial se reuniram na madrugada com o lema: “Sem justiça, sem paz”. Os dois policiais responsáveis pelos disparos foram suspensos. As autoridades abriram uma investigação para apurar a abordagem.
“Se eu matasse alguém, seria condenado e tratado como um assassino. Acho que o mesmo deveria ocorrer com a polícia”, afirmou à agência France-Presse Sherese Lott, 37 anos, que expressava sua revolta nas ruas de Kenosha, cidade de 170 mil habitantes às margens do Lago Michigan. Milhares de pessoas se reuniram pacificamente perante o tribunal. No entanto, uma hora depois de iniciado o toque de recolher, os ânimos contra a polícia se exaltaram.
Manifestantes atiraram garrafas e fogos de artifício contra os agentes e incendiaram um carro e um imóvel. A polícia respondeu com bombas de gás lacrimogêneo e projéteis.Em Minneapolis, onde a morte de George Floyd, em 25 de maio, desatou uma mobilização nacional contra o racismo, manifestantes queimaram uma bandeira dos Estados Unidos. Em Nova York, 200 pessoas foram às ruas protestar. E em Portland, onde desde a morte de Floyd as marchas são quase diárias, os manifestantes repetiram em coro o nome de Jacob Blake. O presidente Donald Trump não comentou o incidente. Já o candidato democrata à Casa Branca, Joe Biden, disse que o racismo é “uma crise de saúde pública” e exigiu uma investigação aprofundada sobre o caso.
Convenção
Enquanto os protestos antirracismo se recrudescem, o Partido Republicano, de Trump, realiza a sua Convenção Nacional, em Charlotte (Carolina do Norte). Ontem, o secretário de Estado, Mike Pompeo, e a primeira-dama, Melania Trump, foram os principais nomes da segunda noite de evento. No primeiro dia, os republicanos trataram de colocar a Biden a pecha de “socialista”. Donald Trump, mais uma vez, duvidou da lisura do voto a distância. “É impossível para os centros eleitorais apurarem, com precisão, 80 milhões de votos não solicitados. Os democratas sabem disso melhor do que ninguém. A fraude e o abuso serão uma vergonha para o nosso país. Esperamos que os tribunais detenham esse golpe!”, escreveu o presidente no Twitter.
TUITADA
“Confirmado: Jacob Blake atualmente paralisado da cintura para baixo. Rezando para que isso não seja permanente”
Ben Crump, advogado da família de Jacob Blake