O consenso das pesquisas de opinião e a torcida dos principais veículos de informação do mundo são de que os Estados Unidos terão um novo presidente em 2021. Inegavelmente, Trump tornou-se o contrassenso. Entretanto, o caminho daqui até o dia 3 de novembro está longe de ser transcorrido em condições normais. A volatilidade que caracteriza esses tempos de especial incerteza fará parte da eleição.
A campanha de Joe Biden, ex-vice presidente de Obama, aposta que basta ele não errar para levar a eleição. O misto de confiança no favoritismo e insegurança quanto à capacidade de formular uma mensagem inspiradora faz com que muitos ao redor de Biden proponham que ele nem participe de debates. Não parece ser a melhor estratégia para um país orgulhoso de seu destemor e de sua combatividade.
Uma combatividade que perdeu o norte nas últimas décadas, colocando o país em lutas inglórias que esfarelaram vários aspectos do vitorioso contrato social americano para boa parte de sua população. O país mordeu a fruta envenenada da polarização e passou a discutir com conceitos da velha política esquerda-direita. Ninguém lidera mais o mundo desse jeito. Não há sabedoria em querer ser esperto demais.
Ensimesmado e envelhecido, o orgulhoso país aguarda um reavivamento de sua liderança, mas a busca nos locais errados. É uma pena porque um EUA jovial, criativo e generoso faz falta ao mundo. (O mesmo aliás serve para o Brasil, um jogador que prefere a inconsistência dos instintos das suas multidões). Do Japão à Portugal, o Velho Mundo precavido tem mais dificuldade em agregar ideias. Só são melhores em perceber os caminhos que dão errado. E, por isso, estão preocupados com o que se passa na cabeça dos EUA.
Sendo assim, não é bom sinal a campanha de Biden apostar que basta manter-se em banho-maria que o povo, cansado da forma dramática de governar dos anos Trump, mandará cartas com votos contra ele. Faz todo sentido que se aposte nesse movimento, mas falta uma visão que explique e entusiasme construtivamente.
Por outro lado, o atual presidente detém tanto o voto mais entusiasmado quanto o mais envergonhado desta eleição. Todo mundo que faz pesquisa de opinião na França sabe que a declaração de intenção de voto na xenófoba família Le Pen está sempre aquém dos votos que realmente acabam recebendo nas eleições. Foi assim, de surpresa, que o Jean-Marie aposentou o Lionel Jospin, em 2002. A mesma cautela deve ser tomada com relação a Trump nos Estados Unidos.
Assim como Hillary Clinton em 2016, Biden é o favorito em 2020. Tanto as pesquisas quanto a situação objetiva do país indicam que Trump perca de lavada. Todavia, há algo cada vez mais estranho nos processos eleitorais dos últimos 10 anos.
O que se ouve do americano médio é que, gostem ou não, apesar de ser muito autocentrado e de ter pavio curto, Trump é sincero e fala o que muita gente pensa. Como muita gente tem vergonha do que pensa — e é bom que seja assim, afinal, a civilização necessita de uma boa dose de autocontrole —, Trump é um canalizador de votos envergonhados. Mas há também um crescente desavergonhamento a respeito de ideias radicais. O qual, aliás, caminha como confronto ao radicalismo do politicamente correto. Falar abobrinha e se guiar por pensamento mágico virou virtude que sensibiliza muitos num contexto em que o moralismo saiu do controle e busca, não a ética, mas multidões ocasionais com expectativas de comportamento majoritário. Para cada Rambo, surge um Guevara, e a improvável síntese entre ambos personagens é que atrai o cidadão que quer participar de luta que não é a sua.
Os Estados Unidos estão entrando numa espiral de política fratricida difícil de sair. Mas não deixa de ser interessante que esteja se assemelhando, cada vez mais, com a política brasileira. São disputas inócuas de poder entre grupos que não têm visão de país e de mundo. Só tem uma explicação: a bizarrice de gente importante sempre atraiu a sentimentalidade das pessoas comuns.
Não resta dúvida, contudo, de que Biden tem muito mais consistência do que o grupo que em torno de Trump lidera os EUA. Em termos de política internacional, a manutenção de Trump alteraria de vez a arquitetura institucional multilateral criada para convívio entre as nações estabelecida após a Segunda Guerra.
Apesar de não se ter clareza do que viria em substituição — afinal, a ideologia do trumpismo é de desconstrução, pouco afeita ao trabalho de informar o que será colocado no lugar —, o que fica no horizonte é a excêntrica visão de líderes totais como Putin, Xi e Trump. Se for essa a trinca à frente do mundo até 2025, esperem uma saída de prumo confrontada com ainda mais excentricidade.
Paulo Delgado, sociólogo