A resposta do Líbano a Emmanuel Macron, horas depois de o líder francês embarcar de volta a Paris, foi incisiva. “A soberania libanesa não será tocada durante o meu mandato”, avisou o presidente do país, Michel Aoun, a jornalistas, ao ser questionado se apoiaria uma investigação internacional. “As demandas por uma investigação internacional sobre a explosão no porto visam encobrir a verdade”, acrescentou. Mas, o que mais chamou a atenção na retórica de Aoun foi o fato de que, pela primeira vez, ele admitiu a hipótese de “interferência externa” para explicar a tragédia da última terça-feira. “É possível que tenha sido causado por negligência ou por uma ação externa, com um míssil ou bomba”, comentou o chefe de Estado, de 85 anos.
Aoun anunciou que o inquérito libanês foca-se em três níveis. “Em primeiro lugar, como o material explosivo entrou e foi armazenado. Em segundo, se a explosão foi resultado de negligência ou acidente. Em terceiro, a possibilidade de interferência externa.” O mandatário libanês contou ter solicitado a Macron “o fornecimento de imagens áreas para determinar se havia aviões no espaço aéreo de Beirute ou mísseis” no momento da explosão. Além de devastar o porto e parte da região central da capital, o incidente levou a população a se rebelar contra o governo e a exigir a renúncia dos políticos. A Organização das Nações Unidas (ONU) fez coro a Macron e pediu um inquérito “independente” sobre o incidente em Beirute.
Também ontem, o xeque Hassan Nasrallah, secretário-geral do movimento xiita libanês Hezbollah, negou qualquer envolvimento no grupo no suposto armazenamento de armas ou explosivos no porto. “Nego totalmente, categoricamente, que haja algo nosso no porto, nem armazém de armas, nem armazém de mísseis (...) nem uma única bomba, nem uma única bala, nem nitrato de amônio”, afirmou, em um pronunciamento transmitido pela televisão. Foi uma resposta às acusações disseminadas por jornais e pela opinião pública. “Todos os responsáveis devem ser responsabilizados. Ninguém deve ser protegido”, defendeu o xeque.
As declarações do presidente não causaram surpresa no analista independente Hadi Nasrallah, 25 anos, testemunha das explosões de terça-feira. “Aoun aceita qualquer hipótese até o fim das investigações. O nitrato de amônio não explode sozinho; então, nós, libaneses, consideramos o incidente suspeito”, disse ao Correio. Hadi lembrou que uma das principais autoridades responsáveis pelo porto de Beirute é membro do partido do presidente, o Movimento Patriótico Livre (FPM). “Por isso, Aoun tenta blindar um dos suspeitos. Acho que ele tenta nos fazer crer em outra história, a fim de não atribuir culpa a alguém protegido pelo regime corrupto.” De acordo com o analista, três dias depois das explosões, alguns cidadãos de Beirute limpavam as ruas e consertavam as portas, arrancadas pela força da onda de choque. “Muitos libaneses estão cansados, pois perderam tudo e ainda precisam tentar sobreviver”, lamentou Hadi.
Corrupção
Moufid Mostafa, cientista político e jornalista libanês baseado em Doha (Catar), afirmou ao Correio que Aoun admitiu a possibilidade de corrupção e não descartou a tese de ataque com míssil. “Não há dúvidas de que Aoun está sob imensa pressão política exercida pela população. Todos no Líbano têm falado que o nitrato de amônio precisa interagir com algo para explodir. Poderia ser uma pequena bomba, por exemplo. O xeque Hassan Nasrallah adotou a mesma linha de discurso do presidente”, disse. “O povo não está satisfeito e deseja a renúncia de todos os representantes da velha política. Também começa a pedir por uma revolução e a exigir uma renovação no governo, por entender que o atual sistema é corrupto. Os libaneses entendem que a tragédia da última terça-feira é resultado da corrupção.”
Por sua vez, Habib Battah — jornalista independente e morador de Beirute — prefere não fazer ilações sobre as causas da tragédia. “Algumas coisas aqui são mantidas em segredo. No entanto, uma vizinha contou ter escutado o barulho de um avião próximo ao porto e chegou a se proteger, temendo um ataque”, afirmou à reportagem. Ele não mostra reticência em classificar o governo de “incompetente”. “Escutei que o nitrato de amônio estava no armazém de número 12 havia seis anos. Isso é uma demonstração de incompetência para com o Líbano”, acrescentou. Segundo Battah, a frustração aumentou depois que o presidente Michel Aoun declarou não saber o quão perigoso era o composto químico armazenado. “O problema está no fato de o sistema de governo do Líbano ser bastante descentralizado e não existir uma comunicação regular entre as autoridades.” Até o fechamento desta edição, o governo confirmava 154 mortos e mais de 5 mil feridos.
» Vozes libanesas
Wadih Al-Asmar, presidente do Centro Libanês para os Direitos Humanos
“O governo colocou sob custódia algumas poucas autoridades e funcionários públicos encarregados do porto e da alfândega. No entanto, acreditamos que isso seja uma paródia para acalmar a população. Estão apenas tentando proteger os políticos.”
Nadi Nasrallah, 25 anos, ativista, analista independente em Beirute e testemunha da explosão
“Não importa o que as autoridades digam. Mesmo que, por exemplo, aleguem envolvimento de Israel no incidente, a população ainda responsabilizará o governo. Isso porque as autoridades mantiveram 2.750t de nitrato de amônio durante anos e, inclusive, receberam alertas sobre o risco que o composto representava à população civil.”
Tatiana Hasrouty, 19 anos, estudante de direito e moradora de Beirute, cujo pai trabalhava no porto e está desaparecido
“Os líderes políticos ou quem quer que esteja envolvido nessa terrível explosão devem ser responsabilizados por suas ações. Quem quer que seja.”
Habib Battah, jornalista independente, morador de Beirute
“Eu não sei se a explosão foi causada por um míssil ou não. Pouco antes da tragédia, minha mãe e dezenas de pessoas escutaram o barulho de um avião. Não sei se era uma aeronave ou fogos de artifício. Já ouvi que o Hezbollah trouxe armas da Síria por via terrestre. Também costumava usar
o porto de Beirute.”