Investigado por: Estadão e Estado de Minas.
Contextualizando: Análises sobre a extensão da cobertura de gelo marinho no oceano Ártico podem enganar ao comparar períodos de tempo específicos, ignorando a série histórica ao longo dos anos. É o que acontece com postagem no X que afirma, de forma irônica, que “aquecimento global causa aumento no nível de gelo no Ártico”. O post se baseia em informação que aponta que o nível de gelo no Ártico atingiu o maior nível em março deste ano desde 2013, o que refutaria a tese de que o aquecimento global está provocando o derretimento de gelo na região. O post, então, conclui que ambientalistas “estão batendo cabeça”. No entanto, como o Comprova mostra neste texto, a análise de períodos específicos não é correta, mas, sim, a tendência histórica, que mostra uma queda contínua da extensão de gelo marinho no Ártico desde o início das medições, em 1979.
Conteúdo investigado: Post publicado no X mostra um print de uma matéria da Revista Oeste com o título “Nível de gelo no Ártico aumenta e atinge patamar de 2013”, seguido da linha fina “Estatísticas contradizem as teorias que sugerem um ‘derretimento total’ das geleiras na região”. A publicação é acompanhada da legenda “Estão batendo cabeças! Aquecimento Global causa aumento no nível de gelo no Ártico”.
Onde foi publicado: X.
Contextualizando: Post no X levanta dúvida sobre o aquecimento global ao expor dados que mostram que, em março deste ano, a extensão de gelo no oceano Glacial Ártico atingiu o maior nível desde 2013. Isso, segundo o post, refutaria a tese de que o aumento da temperatura do planeta está provocando derretimento progressivo de calotas no Ártico.
No entanto, a análise que baseia o post é enviesada. De fato, março de 2024 registrou o maior nível de extensão de gelo no oceano Ártico desde o mesmo mês de 2013. Porém, a análise da série histórica, ao ser ignorada, resulta em conclusão enganosa. Segundo a Nasa, desde 1979, quando a medição teve início, a extensão máxima da cobertura de gelo no Ártico segue um declínio contínuo há 46 anos. O parâmetro é verificado no mês de março, no fim do inverno, quando o gelo atinge o maior nível anual.
De acordo com a Nasa, observações de satélites mostram que a área total coberta por gelo no Ártico atingiu 15,6 milhões de quilômetros quadrados em 14 de março deste ano. Desde 1979, houve uma redução de 1,68 milhão de quilômetros quadrados, área equivalente ao território do Estado do Alasca ou ao do Irã. A análise está disponível no site da National Snow & Ice Data Center (NSIDC), da Universidade do Colorado.
Na página, consta o gráfico abaixo, que mostra o declínio contínuo da extensão máxima da cobertura de gelo no oceano Ártico ao longo dos anos: com uma queda de 2,4% por década.
Levando-se em consideração a extensão mínima de gelo no oceano Ártico, verificada em setembro, no fim do verão, a tendência de queda contínua é ainda mais acentuada, e pode ser constatada neste outro gráfico da Nasa, disponível nesta página e reproduzido abaixo. Segundo a agência, “a extensão do gelo marinho do Ártico no verão está diminuindo 12,2% por década devido às temperaturas mais altas”.
Estudos da agência americana mostram que a temperatura média na Terra aumentou pelo menos 1,1° Celsius desde 1880, a uma taxa de aproximadamente 0,15 a 0,20°C por década. Diferente das mudanças de temperaturas locais que experienciamos no dia a dia, como a variação entre dia e noite ou das mudanças das estações, a temperatura global depende principalmente da quantidade de energia que o planeta recebe do Sol e da quantidade que irradia de volta para o espaço.
“Uma mudança global de um grau é significativa porque é necessária uma grande quantidade de calor para aquecer todos os oceanos, a atmosfera e as massas terrestres nessa quantidade. No passado, bastava uma queda de um a dois graus para mergulhar a Terra na Pequena Idade do Gelo. Uma queda de cinco graus foi suficiente para soterrar grande parte da América do Norte sob uma enorme massa de gelo há 20 mil anos”, diz o site da Nasa.
A Nasa afirma que, além da perda contínua da extensão de gelo no oceano Ártico, a medição de sua espessura mostra que um volume menor de gelo vem conseguindo se manter nos meses mais quentes do ano. Segundo a agência, isso significa que maior quantidade de novo gelo deve se formar a cada ano a partir do zero, em vez de se acumular sobre gelo antigo para formar camadas mais espessas, que são menos propensas a derreter. No site da agência, a cientista Linette Boisvert conclui que “dentro de algumas décadas teremos verões essencialmente sem gelo”, e com a maior parte do oceano Ártico exposta ao sol.
O resultado disso, segundo a cientista, é que o oceano acaba retendo a radiação solar, aquecendo os oceanos e a atmosfera da Terra. Por outro lado, com maior cobertura de gelo no verão, a superfície reflete a radiação solar, contribuindo para o resfriamento do planeta.
Análise que desconsidera tendência histórica produz desinformação
Segundo o glaciologista Jefferson Cardia Simões, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera (INCT), vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a análise repercutida pelo post usa uma “bem conhecida técnica de desinformação” ao utilizar o dado de um ano específico e desprezar o histórico.
“Cientistas não trabalham com anomalias de um dia ou um mês, e sim com tendências ao longo dos anos. Trata-se de um caso típico de desinformação em que ‘se esquece’ que a tendência do gelo marinho ártico continua a decrescer e a espessura deste gelo também diminui”, diz Simões, que também é cientista sênior do Programa Antártico Brasileiro (Pronatar).
Em relação ao gráfico abaixo, retirado do site da Nasa, Jefferson Simões observa que, em 2012, quando foi registrado o recorde mínimo de gelo no oceano Ártico em setembro, a quantidade de gelo em março daquele ano foi maior do que a verificada em março de 2024, o que mostra que a análise comparando meses específicos produz resultado enganoso. “Comparar um mês específico com o mesmo mês de um ano anterior é algo que não tem validade”, diz Simões.
O pesquisador destaca que as variações na extensão do mar congelado ao longo dos dias e meses não dependem só da temperatura média, mas de outras variáveis, como mudanças na velocidade do vento e das correntes oceânicas. Ele observa que há momentos de pequeno aumento seguidos por queda acelerada. “O que vale é a tendência. E ela é bem clara: a extensão do gelo marinho está diminuindo”, diz o glaciologista.
Da mesma forma, Luiz Henrique Rosa, professor do departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um dos coordenadores da primeira missão científica brasileira Operação Ártico, realizada em julho de 2023, afirma que os modelos apontam para um derretimento irreversível da camada de gelo na região. A expedição observou a retração dos glaciares, do gelo marinho e a perda das camadas de neve mais antigas, que antes eram permanentes, e, agora, deixam o solo à mostra durante o verão no Ártico. Também foi observada a presença de mosquitos e de vegetação, historicamente incomuns para a área visitada.
“Os negacionistas, por diferentes motivos, negam a realidade para fugir da mesma. Negam os fatos observados e constatados pela ciência séria, como se isso fosse resolver os problemas. Ou pegam dados pontuais e distorcem para atender seu público ou confundir a sociedade do que realmente importa”, afirma Rosa.
O professor explica que os polos funcionam como refrigeradores da Terra, mantendo assim um equilíbrio para todo o planeta. Caso o aumento da temperatura global torne o derretimento do gelo no Ártico irreversível, o desequilíbrio ambiental fará com que o mesmo ocorra com a Antártica, levando a consequências catastróficas. “A situação tende a piorar nos próximos anos e décadas, pois estamos pagando por não cuidar do planeta”, declara.
Como o conteúdo pode ser interpretado fora do contexto original: Ao apresentar dados fora de um contexto mais amplo comparando apenas dois pontos específicos, 2024 e 2013, o leitor é levado a acreditar que a situação no Ártico está melhorando ou que nunca foi alterada. Entretanto, ao analisar os gráficos embasados por estudos científicos durante o período completo das últimas décadas, é possível ver que a tendência geral é de aumento no degelo na região.
O que diz o responsável pela publicação: O Comprova não localizou meios para entrar em contato com o autor da postagem no X.
Alcance da publicação: Até a publicação deste texto, a postagem contava com 15,8 mil visualizações.
Como verificamos: Buscamos pelos dados sobre a taxa de derretimento da camada de gelo no Ártico no site da Nasa e do NSIDC para conferir as informações citadas no conteúdo investigado. Em seguida, entramos em contato com a Nasa, solicitando uma interpretação da agência sobre os dados, e consultamos os especialistas Jefferson Cardia Simões, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera (INCT), e Luiz Henrique Rosa, professor do departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: Em janeiro deste ano, o Comprova explicou por que é consenso científico que ação humana causa mudanças climáticas. Também explicamos o que os protestos de agricultores na Europa têm a ver com políticas ambientais e mostramos ser falso que a Suécia abandonou metas de desenvolvimento sustentável.
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