VERIFICAÇÃO

Lula se encontrou com liderança religiosa da Nigéria em evento de igualdade racial, não com ‘feiticeiro’

É enganoso o vídeo que afirma que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) convidou "feiticeiro" para fazer "magia negra" no Palácio do Planalto

Lula se encontrou com liderança religiosa da Nigéria em evento de igualdade racial, não com ‘feiticeiro’ -  (crédito: Reprodução/ Projeto Comprova )
Lula se encontrou com liderança religiosa da Nigéria em evento de igualdade racial, não com ‘feiticeiro’ - (crédito: Reprodução/ Projeto Comprova )
Correio Braziliense
postado em 29/08/2023 13:49

Por projeto Comprova — 

Investigado por: Jornal Plural e O Povo

Enganoso: É enganoso o vídeo que afirma que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) convidou “feiticeiro” para fazer “magia negra” no Palácio do Planalto. As imagens compartilhadas mostram, na verdade, cumprimento entre o presidente e Oba Adeyeye Enitan Ogunwusi, o rei de Ifé, cidade na Nigéria, berço da etnia iorubá. A autoridade participou de evento do Ministério da Igualdade Racial (MIR) e não ocorreu nenhum tipo de cerimônia religiosa. O MIR repudiou o racismo religioso contido no vídeo.

Conteúdo investigado: Publicação traz vídeo que mostra um homem caminhando no Palácio do Planalto e indo ao encontro do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A gravação termina exibindo três fotografias feitas na ocasião. Sobre o vídeo, há um texto que diz: “Esse vagabundo trouxe um feiticeiro 1 classe para fazer magia negra no Palácio. Cade os crente que votaram nesse adebito de satanás” (sic). O post é acompanhado da legenda: “Lula quer virar Mito a todo pano” e emojis de risada.

Onde foi publicado: X (antigo Twitter).

Conclusão do Comprova: Não é verdade que o presidente Lula (PT) tenha convidado um “feiticeiro” e que ele tenha realizado qualquer tipo de cerimônia religiosa no Palácio do Planalto. Publicações mencionam de forma ofensiva a presença do rei da cidade nigeriana de Ifé, Oba Adeyeye Enitan Ogunwusi, em evento do governo federal no dia 21 de março.

Na data, houve o lançamento de um pacote de medidas para promoção da igualdade racial, em alusão aos 20 anos de políticas públicas voltadas para o tema. O evento foi transmitido ao vivo nos veículos de comunicação do governo e durou cerca de 1h40. Em nenhum momento houve a realização de cerimônia religiosa. Foi um evento institucional que seguiu protocolos.

O rei de Ifé, no entanto, não veio ao Brasil a convite nem do Ministério de Igualdade Racial nem do presidente. Sua visita fazia parte de um movimento do monarca iorubá de convidar outros países para visitarem a Nigéria, conforme informou o MIR. Ele cumpriu outras agendas aqui, como a assinatura de carta de intenções para cooperação científica entre a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e uma universidade nigeriana, no Rio de Janeiro, e a entrega de título de reconhecimento a um território quilombola, na Bahia.

As assessorias de imprensa da Presidência e do MIR lamentaram o cunho da publicação e repudiaram o racismo religioso. “Referir-se ao monarca africano como um ‘feiticeiro’ é expressão latente do racismo religioso que tanto movimenta as indústrias de notícias falsas e disseminação do ódio”, escreveu o ministério em nota.

Enganoso, para o Comprova, é todo conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até 25 de agosto, o post somava 28,3 mil visualizações e 665 curtidas. Posteriormente, o vídeo foi excluído da plataforma.

Como verificamos: Para descobrir quem era o homem que aparecia junto de Lula, o Comprova fez uma pesquisa reversa no Google com imagens do vídeo. Assim, identificou uma publicação em que o rei de Ifé é mencionado. O Comprova buscou o nome da autoridade no Google e encontrou reportagens sobre a agenda de Oba Adeyeye Enitan Ogunwusi no Brasil, em março de 2023. Consultou também a agenda eletrônica de Lula para saber qual evento aconteceu no Palácio do Planalto no período mencionado.

O Comprova entrou em contato com o Ministério da Igualdade Racial, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República, os gabinetes dos deputados petistas Vicentinho e Erika Kokay, responsáveis pelo requerimento da sessão na Câmara com participação do rei de Ifé, e a The African Pride, empresa do ramo audiovisual que organizou a visita de Oba Adeyeye Enitan Ogunwusi à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Por fim, falou com o responsável pela publicação do conteúdo.

Evento com a presença de Ogunwusi foi organizado pelo Ministério da Igualdade Racial

Em 21 de março de 2023, ocorreu o lançamento do Pacote Pela Igualdade Racial no Palácio do Planalto. Organizado pelo Ministério da Igualdade Racial, o evento contou com a presença de Oba Adeyeye Enitan Ogunwusi, rei, ou Ooni, da cidade de Ifé, no estado de un, no sudoeste da Nigéria, considerada o berço da etnia iorubá.

Na cerimônia, houve a execução do hino Nacional, uma performance artística e discursos de autoridades. Lula e a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, fizeram pronunciamentos.

“Na ocasião não foi realizada nenhuma cerimônia religiosa no Palácio, e, sim, a sanção de importantes decretos pelo Presidente Lula, demarcando a importância e centralidade da pauta da questão racial no novo governo”, disse o MIR, em nota.

O rei de Ifé também publicou sobre o encontro com Lula em suas redes sociais. “O presidente Lula, com quem tive uma conversa profunda no início deste mês, está sinceramente empenhado em aprimorar a cooperação patrimonial com a House of Oduduwa [organização dedicada a promover a cultura, a igualdade para as mulheres, o empoderamento e a moda africana, presidida por Oba Adeyeye Enitan Ogunwusi]. Essa é a nossa nobre missão, pois enfatizamos plenamente os laços tradicionais que unem nossos dois países e ressaltamos nossa determinação de fortalecer e reacender cada vez mais o espírito de fraternidade por meio dos mecanismos de cultura, patrimônio e valores econômicos compartilhados”, escreveu, em 30 de março.

Oba Adeyeye Enitan Ogunwusi não veio ao Brasil a convite de Lula

O rei de Ifé participou de diversos eventos durante a estadia no Brasil. Antes da cerimônia no Palácio do Planalto, a autoridade assinou uma carta de intenções para cooperação científica entre a Fiocruz e a Universidade de Ojaja, na Nigéria.A assinatura ocorreu em 18 de março, durante o evento “O futuro é ancestral: Back to home”, realizado na Alerj.

A visita de Oba Adeyeye Enitan Ogunwusi à Alerj, segundo reportagem da Casa, foi organizada pela The African Pride com o objetivo de “fortalecer as relações políticas, empresariais e culturais entre Brasil e Nigéria”.

Fundada em 2021 no Rio de Janeiro, a empresa tem como CEO Carolina Maíra Morais. Em 24 de março, ela postou no Instagram um vídeo do encontro entre Lula e o rei de Ifé, utilizado pelas peças de desinformação. O Comprova entrou em contato com a The African Pride, mas não obteve resposta até a publicação da checagem.

No dia seguinte, em 19 de março, Oba Adeyeye Enitan Ogunwusi chegou à Bahia, onde entregou o primeiro título de reconhecimento a um território quilombola. A cerimônia foi na comunidade Quingoma, em Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador. O reconhecimento de território iorubá no Brasil é o primeiro fora da África.

A autoridade também participou, em 21 de março, de sessão solene da Câmara dos Deputados em homenagem ao Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. A celebração consta na Lei Federal 14.519/23, sancionada por Lula no dia 6 de janeiro de 2023.

A proposta que originou a lei é de autoria do deputado federal Vicentinho (PT-SP), também autor do requerimento da sessão na Câmara, junto à deputada Erika Kokay (PT-DF). Conforme o gabinete do deputado, o rei foi convidado para o evento, mas já estava no Brasil em visita ao Rio de Janeiro.

Ogunwusi já havia visitado o Brasil em junho de 2018, quando ele e outros 20 líderes de diversas religiões e crenças participaram de evento inter-religioso no Cristo Redentor. Na época, o rei passou três dias no Rio de Janeiro, quando foi homenageado na Alerj e recebeu a medalha Tiradentes, a maior honraria do estado.

O Reino de Ifé

Embora a Nigéria seja um país com regime presidencialista, o conceito de reinado ainda é relevante para a manutenção das tradições africanas. Adeyeye Babatunde Enitan nasceu em outubro de 1972 e é considerado rei de Ifé, uma antiga cidade iorubá no estado de un, no sudoeste da Nigéria. A região é considerada o berço da etnia e reverenciada como sagrada.

Ele é o 5º descendente direto da Família Governante Giesi (Ooni Ojaja Orarigba), que começou com o reinado de Ayikiti Ninu Aran, de 1878-1880. Sua formação é no campo da Engenharia, Aquisições e Construção, com atuação localmente e no exterior por mais de 12 anos, conforme explica o seu site oficial. Atualmente, é o fundador e diretor geral do Grupo Gran Imperio, holding de empresas imobiliárias e de construção, manufatura, gestão de instalações, lazer e turismo na Nigéria.

Ooni de Ife, designação para o rei, é tido como descendente direto de Oduduwa, deus a quem é atribuída a criação da cidade. Eles são contados em primeiro lugar entre os reis iorubás. Iorubá é um dos maiores grupos étnico-linguísticos da África Ocidental.

A dinastia real de Ifé remonta à fundação da cidade, há mais de dois mil anos, conforme informação da casa governante. Ooni Adeyeye Enitan ascendeu ao trono em dezembro de 2015.

Após a formação do Congresso Yoruba Orisha em 1986, a figura dos reis adquiriu “um status internacional como os detentores de seu título não viam desde a colonização da cidade pelos britânicos”, segundo o site oficial da casa. Nacionalmente, o cargo ficou conhecido como Royal Obas da República Federal da Nigéria, sendo considerado um sumo sacerdote e guardião da cidade sagrada de todos os iorubás.

Segundo reportagem do G1, reis como Oba Adeyeye Enitan Ogunwusi são importantes para a política do país “porque carregam o legado e o respeito da cultura da Nigéria”. Na cosmogonia africana, Ifé pertence ao estado de Oxum e foi criada por Odudua, uma das principais divindades iorubás.

O que diz o responsável pela publicação: O Comprova entrou em contato com o perfil @crioulossantafe por mensagem no WhatsApp. O número do telefone foi encontrado por meio da conta do Facebook do usuário. O homem disse que seu post apenas afirma que “Lula queria ser mito” e que “nunca falou em magia negra”. O usuário disse que viu o vídeo no Kwai e compartilhou porque achou engraçado. Após o contato do Comprova, ele excluiu a publicação.

O que podemos aprender com esta verificação: É comum que vídeos com legendas que mudam o contexto sejam usados para desinformação. Para isso, usam afirmações exageradas ou enganosas voltadas para causar revolta em grupos específicos e promover rejeição a certos temas. Imagens de líderes religiosos de matriz africana são utilizadas de forma enganosa para reforçar atos de intolerância religiosa.

Sempre desconfie quando o autor da publicação fizer uma acusação sem informar a data da gravação ou o contexto. Faça uma busca no Google por palavras-chave relacionadas ao tema e procure se informar em sites de órgãos oficiais ou em veículos de comunicação de sua confiança.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: Em checagens anteriores envolvendo Lula, o Comprova mostrou que o presidente levou presentes em contêineres de forma legal e que taxa sobre energia solar foi sancionada no governo de Jair Bolsonaro (PL), não de Lula.

Verificado por: O Estado de S.Paulo, Correio Braziliense, Jornal O Popular, Nexo Jornal e Folha de S.Paulo.

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