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Tuítes tiram live de contexto e insinuam que senador defende tratamento precoce

São enganosos tuítes de políticos bolsonaristas que resgatam conteúdo antigo para atacar o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP)

São enganosos os tuítes postados no fim de maio que usam trechos de uma live em que o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) promete condecorar profissionais de saúde do Amapá que defendem o chamado “tratamento precoce” — kit de remédios sem eficácia comprovada contra o novo coronavírus e que não é recomendado pelas principais autoridades médicas de saúde no mundo.

O vídeo é verdadeiro, mas foi gravado em 9 de julho de 2020, o que não é informado pelos autores das postagens e gera desinformação. Recentemente, Rodrigues, que é vice-presidente da CPI da Covid, declarou diversas vezes não defender tais medicamentos, como cloroquina e ivermectina.

O conteúdo foi compartilhado no fim de maio pela deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) e pelo vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), políticos que defendem esse tipo de terapia até hoje, seguindo a linha do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Mesmo já havendo evidências sólidas sobre a ineficácia de algumas drogas à época da live, e não existindo comprovação científica para as demais, Rodrigues as apoiava. Na conversa, ele afirma que o protocolo médico estaria “salvando vidas” no Amapá e propõe homenagear três profissionais de saúde que participam da conversa com comendas do Congresso Nacional.

Mas declarações recentes mostram sua mudança de opinião. Em 31 de maio deste ano, por exemplo, no programa Roda viva, da TV Cultura, ele criticou o presidente por ter insistido na “cloroquina quando precisávamos de vacinas”. “Temos que ir a fundo nesses contatos e obsessão por tratamentos que não têm eficácia”, disse.

Procurado pelo Comprova, Rodrigues justifica seu posicionamento na live porque “era necessário saudar e homenagear todos os esforços de médicos” na época, mas que, hoje, “a ciência já estabeleceu consensos”.

A reportagem tentou contatar Bia Kicis e Carlos Bolsonaro, mas não obteve retorno até a publicação deste texto.

Como verificamos?

Inicialmente, tentamos buscar o vídeo original nas páginas de Rodrigues, mas não o encontramos. A gravação completa foi postada no dia 24 de maio deste ano, no perfil de um dos enfermeiros citados pelo senador, e excluída pelo YouTube por violar as diretrizes da comunidade.

Pesquisamos no site do governo do Amapá e em veículos de imprensa os protocolos adotados no estado no combate ao coronavírus e, na página do Senado, quais são as comendas existentes.

Também entramos em contato com a assessoria de comunicação do governo do Amapá e com os profissionais de saúde que participaram da live verificada aqui por mensagem no Instagram, e-mail e WhatsApp. Com exceção do médico Pedromar Valadares, que respondeu por mensagem de WhatsApp, não houve resposta ao contato do Comprova.

Pesquisamos vídeos e publicações oficiais que demonstrem a atual posição do Governo do Amapá em relação ao protocolo com uso de medicamentos sem eficácia comprovada.

A assessoria de imprensa de Rodrigues respondeu o contato do Comprova com um vídeo gravado pelo senador a respeito do assunto.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 3 de junho de 2021.

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A live do senador

Em 9 de julho de 2020, o perfil oficial do senador Randolfe Rodrigues publicou um post no Facebook anunciando uma live com três profissionais que integram o Comitê Médico de Enfrentamento à Covid-19 no Amapá. Os nomes conferem com aqueles que aparecem nos tuítes de Bia Kicis e Carlos Bolsonaro.

O vídeo não está disponível nas redes do político, mas o conteúdo completo foi publicado por um dos participantes, em 24 de maio de 2021, em uma conta pessoal no YouTube. Ele foi removido posteriormente pela plataforma, por violar as diretrizes da comunidade.

O Comprova acessou e baixou o arquivo antes de ser apagado. Com ele, a reportagem pôde verificar que o conteúdo que viralizou nas redes mantém o sentido original da gravação, apesar de recortar alguns trechos específicos. De fato, Randolfe elogia o trabalho de seus convidados e o protocolo médico criado no estado que representa politicamente.

“Eles são responsáveis pelo protocolo médico que foi usado, em especial, pela prefeitura de Macapá e que foi responsável por impedir que muito mais mortes ocorressem no Amapá”, afirma o senador na abertura da live. “Estarei propondo, no Congresso Nacional, a entrega de comendas por tudo que fizeram para evitar a perda de vidas.”

O protocolo de ‘tratamento precoce’

O protocolo em questão é denominado “Enfrentamento da Covid-19 na Atenção Primária” e pode ser acessado no site da Escola de Saúde Pública do Governo do Estado do Amapá, com a data de 23 de maio de 2020.

O documento recomenda a adoção, na rede pública de saúde, do chamado “tratamento precoce”, kit composto por uma série de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19: cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e nitazoxanida. A publicação também orienta sobre realização de exames e procedimentos destinados a pacientes graves e que apresentem complicações.

Três dos quatro autores do protocolo médico conversaram ao vivo com o senador. Eles defendem no vídeo a adoção das terapias aos primeiros sintomas. “O tratamento precoce, para mim e para muitos pacientes que eu cuidei, fez diferença”, alega a médica cardiologista Ana Chucre — mesmo sem uma metodologia rigorosa de pesquisa que permita apontar que realmente os doentes se recuperaram graças ao uso dos remédios citados, e não por outros fatores ou mesmo pela resposta natural do organismo.

O coronel bombeiro militar e médico da Defesa Civil Pedromar Valadares Melo, especialista em endoscopia digestiva e presidente do comitê médico no Amapá, também deixa claro o posicionamento do grupo na videochamada: “Nós não somos cloroquina futebol clube, nós somos tratamento precoce futebol clube, o que inclui uma abordagem muito mais ampla”, afirma em um trecho da conversa.

O terceiro participante é o enfermeiro Patrício Almeida, que é pós-graduado em engenharia biomédica e ciências farmacêuticas e tem especialização em epidemiologia. Ele justifica a introdução do protocolo na rede pública de saúde com base em estudos in vitro, ou seja, em células de laboratório, e in silico, por meio de simulações computacionais. As drogas também foram escolhidas com base na observação clínica e na disponibilidade, segundo ele.

Como o Comprova já mostrou em outras checagens, resultados in vitro e in silico não são capazes de apontar eficácia e segurança de um medicamento contra a covid-19. Esses estudos são chamados de pré-clínicos, assim como os testes em animais, porque apenas credenciam as drogas para serem testadas posteriormente em humanos.

Existem diversos fatores que podem fazer com que um remédio funcione nessas etapas preliminares e depois falhe no organismo humano, um ambiente muito mais complexo. É preciso que a droga chegue na quantidade e no local corretos, por exemplo, e que demonstre a mesma ação proposta pelos cientistas em uma situação real de infecção.

O que diz a ciência

Nenhum dos remédios citados é recomendado pelos principais órgãos mundiais de saúde como tratamento para a covid-19. No caso da cloroquina e da hidroxicloroquina, a ineficácia inclusive já está comprovada contra a doença, com ou sem a associação com o antibiótico azitromicina.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) contraindicou “fortemente” a adoção dessas duas drogas frente à quantidade atual de evidências demonstrando que elas não oferecem qualquer benefício aos pacientes. O mesmo posicionamento é adotado pela Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) e pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA).

Na época em que o vídeo foi gravado, havia fortes indícios mostrando que esse tipo de terapia era inócua em pacientes internados. Já eram conhecidos, por exemplo, resultados preliminares dos programas Solidariedade (da Organização Mundial da Saúde) e do Recovery (do governo do Reino Unido em parceria com a Universidade de Oxford), com milhares de voluntários.

A distribuição para pacientes com sintomas leves e moderados também não era recomendada pelos principais órgãos de saúde naquele momento, mas ainda existia uma discussão sobre a possibilidade de funcionar nesse contexto. A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), por exemplo, apontou em um informe de 30 de junho de 2020 que os principais estudos já descartavam benefício a pacientes hospitalizados, mas ainda se aguardava estudos sobre a utilização aos primeiros sintomas.

A situação mudou em 17 de julho de 2020, quando a entidade divulgou uma atualização informando que a medicação também não era recomendada em casos leves de covid-19 diante das novas pesquisas publicadas. No final de julho, outro grande estudo brasileiro, da Coalizão Covid-19 Brasil, contraindicou a cloroquina e a hidroxicloroquina para quadros leves e moderados e alertou para o risco de efeitos colaterais, como arritmias cardíacas.

Os antiparasitários ivermectina e nitazoxanida também não tiveram eficácia e segurança comprovadas cientificamente até hoje. A ivermectina teve a ação antiviral contra o Sars-Cov-2 proposta por um estudo australiano que usou uma dose maior do que a máxima permitida para humanos, em abril de 2020. A nitazoxanida, por sua vez, foi relatada como um sucesso em pesquisas iniciais, naquele mesmo mês, pelo ministro de Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes.

Até o final de junho de 2020, de acordo com a SBI, as evidências disponíveis sobre o tratamento com essas drogas ainda eram apenas in vitro e não serviam para orientar a prática clínica, como fizeram os profissionais do Amapá ouvidos pelo senador Randolfe Rodrigues.

A eficácia ou ineficácia da ivermectina em pacientes de covid-19 ainda não está demonstrada. De acordo com a atualização mais recente da OMS, os estudos disponíveis atualmente são inconclusivos e o tratamento com a droga deve se restringir apenas a pesquisas clínicas. O mesmo posicionamento é adotado pela EMA, enquanto o Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH) aponta que ainda não existe base suficiente para recomendar contra ou a favor do medicamento.

Já a pesquisa financiada pelo governo federal com a nitazoxanida indicou que a droga é capaz de reduzir a carga viral dos pacientes tratados, mas não os sintomas. Dessa forma, em artigo publicado na revista European Respiratory Journal, os pesquisadores concluem que a droga não é uma terapia efetiva contra a covid-19. Em janeiro, o Ministério da Saúde desistiu do medicamento, ao anunciar que ele não seria distribuído na rede pública para essa finalidade.

Amapá segue apostando no kit

Reportagens da Rede Amazônica, afiliada da TV Globo no Amapá, publicadas no portal de notícias G1 em 5 de janeiro e 9 de abril de 2021, noticiam o uso de protocolos que preveem uso de medicamentos sem eficácia comprovada pelo Comitê Médico de Enfrentamento à Covid-19 do Estado do Amapá. Na primeira matéria, Patrício Almeida defende a adoção de ivermectina como medida preventiva.

Os três profissionais de saúde que participaram da live com Randolfe Rodrigues em julho de 2020 são apresentados ainda como integrantes do Comitê Médico em propaganda da live da Federação do Comércio do Amapá (Fecomércio), que ocorreu em 13 de maio de 2021. Na transmissão, Patrício Almeida volta a defender a eficácia de medicamentos sem comprovação na fase inicial da doença.

Já em uma transmissão ao vivo publicada no canal do YouTube do Conselho Regional de Medicina do Estado do Amapá (CRM-AP), em 14 de abril de 2021, os médicos Pedromar Valadares e Ana Chucre defendem o tratamento com medicamentos sem eficácia comprovada, sentados ao lado do governador do Amapá, Waldez Góes (PDT-AP). O vídeo da transmissão, que foi anexado em uma matéria no site da Secretaria do Estado da Saúde do Amapá (Sesa), conta com a participação de diversos defensores do chamado tratamento precoce, como a secretária do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro.

O Comprova questionou a Sesa sobre se ainda utiliza o protocolo e se os três médicos permanecem no Comitê Médico, mas não houve retorno até a publicação desta verificação. O médico Pedromar Valadares foi procurado e respondeu por mensagem que não tem nada a declarar. Os profissionais de saúde Ana Chucre e Patrício Almeida foram procurados por mensagem pelo Instagram e também não responderam até a publicação desta verificação.

Sem registro de comendas

Embora Rodrigues tenha afirmado na live que proporia ao Congresso Nacional a entrega de comendas para os três profissionais do Amapá, a reportagem não encontrou nenhum registro do pedido em órgãos oficiais e nenhuma publicação a respeito da homenagem.

Rodrigues diz que vai propor “a entrega de comendas aos três por tudo o que fizeram para evitar a perda de vidas” na pandemia. Uma das definições da palavra comenda, segundo o dicionário, é “distinção puramente honorífica”, ou seja, ela serve para homenagear alguém. O senador não especifica qual comenda proporia, e há diferentes tipos delas. Uma das mais importantes é a Ordem do Congresso Nacional, “destinada a galardoar as pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras, que se tenham tornado dignas do especial reconhecimento do Poder Legislativo do Brasil”.

No Senado há outras comendas, e duas são específicas sobre a área da saúde. Instituída em 2016, a Comenda Nise Magalhães da Silveira “é conferida a personalidades que tenham oferecido contribuição relevante ao desenvolvimento de técnicas e condições de tratamento humanizado da saúde no Brasil”. Há também a Comenda Santa Dulce dos Pobres, “destinada a homenagear pessoas físicas ou jurídicas que tenham prestado relevantes serviços na área social da saúde”.

Dos três médicos que Rodrigues elogia na live, pelo menos um já recebeu uma homenagem oficial. Em 20 de dezembro de 2020, o governo do Amapá entregou a Pedromar Valadares a Medalha de Mérito Institucional Governador Aníbal Barcelos. Ela foi recebida em cerimônia que homenageou 23 militares – Valadares é coronel – e um civil e que contou com a participação do governador do estado, Waldez Góes (PDT). A reportagem questionou o órgão sobre o motivo da condecoração a Valadares, mas não recebeu retorno até a publicação deste texto.

Contraponto

Procurado pelo Comprova para comentar o caso, o senador Randolfe Rodrigues gravou um vídeo, que foi encaminhado na terça-feira, 1º de junho, por meio de sua assessoria. Na gravação, ele ressalta a data da live, feita em julho de 2020, e justifica o convite aos profissionais de saúde por estarem “na linha de frente da guerra contra o novo coronavírus” no Amapá.

“Era necessário saudar e homenagear todos os esforços de médicos, enfermeiros que compreendiam desde o começo, ao contrário do presidente da República, em seu pronunciamento no dia 24 de março (de 2020), que não se tratava de uma gripezinha, mas de uma gravíssima pandemia”, declara.

O senador afirma que, naquele momento, “todas as medidas contra a pandemia deveriam ser saudadas”, a exemplo do isolamento social e dos esforços dos profissionais de saúde. “Passado um ano da pandemia, a ciência já estabeleceu consensos. A OMS já estabeleceu consenso de que a forma mais eficaz de derrotar o coronavírus e superar esse momento dramático que vivemos é através de vacina no braço de todos os brasileiros, caminho que lamentavelmente o governo federal não escolheu.”

Segundo o senador, alguns optaram por salvar vidas e insistiram na luta pelas vacinas, enquanto outros insistiram em um “caminho trágico” que foi o de “infectar a todos” e resultou em 450 mil mortes de brasileiros por covid-19. O senador diz ainda que “a ciência será sempre o caminho para nos orientar na saída dessa gravíssima crise”. Ele não esclareceu se realmente entrou com o pedido de entrega das comendas no Congresso.

Por que investigamos?
Em sua quarta fase, o Projeto Comprova investiga conteúdos possivelmente falsos ou enganosos sobre a pandemia que tenham alcançado alto grau de viralização nas redes sociais. Somados, os posts verificados aqui, de Bia Kicis e Carlos Bolsonaro, receberam mais de 15,3 mil curtidas e foram compartilhados 4,8 mil vezes até 3 de junho.

Ao usar afirmações de Rodrigues feitas no ano passado, a deputada e o vereador tentam descredibilizar o senador. Atualmente, como vice-presidente da CPI da Covid, Rodrigues vem se posicionando abertamente contra remédios sem eficácia comprovada no combate ao coronavírus. A tentativa de colocá-lo como mentiroso, ou como um político que defendeu o tratamento precoce um dia, segue a narrativa do presidente, que nega os impactos da pandemia desde março do ano passado, quando ela começou.

É importante ressaltar que as únicas medidas realmente eficazes na redução dos casos de covid-19 são a vacinação, o uso de máscaras e álcool em gel, a lavagem das mãos e o distanciamento social.

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