É enganosa a postagem no Facebook que afirma que o governo federal enviou R$ 420 bilhões aos estados brasileiros para auxiliar no combate à pandemia de covid-19. O valor, divulgado pela própria União, inclui, além do apoio para enfrentar o novo coronavírus, repasses de rotina, previstos constitucionalmente, e o auxílio emergencial, verbas que, segundo especialistas, não podem ser consideradas repasses.
Conteúdo verificado: Imagem circula no Facebook e, no contexto da disputa política entre o presidente Bolsonaro e os governadores, leva a crer que o governo federal enviou R$ 420 bilhões para o combate à pandemia a governadores e prefeitos. Diz a imagem: “O povo quer saber… onde está o dinheiro enviado pelo Bolsonaro? Foram mais de R$ 420 bilhões repassados pelo governo federal a estados e municípios durante a pandemia”.
É enganosa uma postagem no Facebook que afirma que o governo federal transferiu R$ 420 bilhões para estados e municípios enfrentarem a pandemia de covid-19. Embora uma publicação no site da União traga este valor como medidas de apoio aos governos locais realizadas durante a crise causada pelo novo coronavírus, até 15 de janeiro de 2021, o cálculo inclui transferências constitucionais obrigatórias, repasses de rotina para a saúde que já ocorriam independentemente da pandemia, dinheiro enviado especificamente para o combate à doença e medidas de suporte econômico não relacionadas à saúde, como a suspensão das dívidas dos entes subnacionais.
Na lista, o governo federal também descreve valores de “benefícios ao cidadão”, como programas de transferência de renda e o auxílio emergencial, que são geridos por bancos federais e pagos diretamente aos beneficiários, sem passar pelos cofres de governos estaduais e prefeituras. Segundo dois economistas especializados em contas públicas ouvidos pelo Comprova, o auxílio não pode ser considerado como repasse aos estados. Dados dos sites Tesouro Transparente e SIGA Brasil mostram que a maior parte da despesa federal com a covid-19 foi o pagamento do auxílio emergencial.
Três sites de transparência de gastos públicos consultados pela reportagem indicam que o valor enviado diretamente para governadores e prefeitos está bem abaixo dos R$ 420 bilhões. O Tesouro Transparente aponta transferências de R$ 109,8 bilhões da União para estados e municípios; incluindo valores de combate à covid-19 e auxílios financeiros para esses governos. O SIGA Brasil diz que, de todos os gastos do governo federal com o enfrentamento do novo coronavírus, apenas R$ 78,26 bilhões foram transferidos para estados, municípios e para o Distrito Federal. Por fim, o portal LocalizaSUS, do Ministério da Saúde, mostra que, em todo o ano passado, os estados receberam R$ 32,3 bilhões em recursos enviados exclusivamente para combater a doença.
O Comprova procurou dois perfis no Facebook que compartilharam o conteúdo, mas não teve retorno. Um deles bloqueou o verificador na rede social.
Como verificamos?
Buscamos na Internet menções ao repasse de R$ 420 bilhões para estados durante a pandemia e encontramos um link do site do governo federal com o mesmo valor e um detalhamento do que estava incluído nessa conta. Entrevistamos dois economistas, o professor de ciências públicas da Universidade de Brasília (UnB) Roberto Piscitelli e o ex-diretor do Banco Central Carlos Eduardo Freitas, para entender se os valores descritos pelo governo, como auxílio emergencial, podem ser considerados repasses aos estados.
Consultamos nos sites de órgãos públicos Tesouro Transparente, SIGA Brasil e Localiza SUS o quanto foi transferido pela União para os governos estaduais a título de enfrentamento à pandemia em 2020. Também pesquisamos matérias de veículos de comunicação para relembrar a divergência entre o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e os governadores em relação ao montante de dinheiro enviado como ajuda aos estados.
Questionamos, também, a Secretaria de Comunicação do governo federal, mas não obtivemos resposta até a mais recente atualização desta reportagem.
Por fim, tentamos ouvir dois perfis do Facebook: o que publicou o conteúdo em sua linha do tempo (“vitoria.gea”) e o que compartilhou esta mesma postagem no grupo em que ela viralizou (“locutornildo”). Nenhum deles respondeu. O conteúdo original foi excluído antes da tentativa de contato do Comprova e o primeiro perfil a publicá-lo compartilhou, nos stories, uma crítica às agências de checagem, alegando que elas “defendem a censura”.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 4 de junho de 2021.
Verificação
Os R$ 420 bilhões
A cifra de R$ 420 bilhões foi divulgada pelo próprio governo federal no final de fevereiro de 2021. Ela inclui uma série de recursos pagos pela União até 15 de janeiro de 2021, não só dinheiro para o enfrentamento à pandemia. Estão incluídos nesse cálculo recursos constitucionais repassados para estados e municípios e dinheiro para a saúde (incluindo repasses de rotina e de enfrentamento à covid-19. No detalhamento por estado, além desses recursos, o governo incluiu na conta a suspensão da dívida dos governos estaduais durante a crise de saúde e benefícios repassados diretamente ao cidadão, como programas de transferência de renda e auxílios.
O economista e professor de ciências públicas da UnB Roberto Piscitelli explicou que gastos como o pagamento do auxílio emergencial não podem estar na soma de repasses aos estados, pois são considerados transferências diretas para pessoas físicas. “Não pode de jeito nenhum considerar isso um aporte de recursos aos Estados”, argumentou.
O economista e ex-diretor do Banco Central Carlos Eduardo Freitas corrobora o que diz o colega e afirma que o valor de R$ 420 bilhões precisa ser analisado. “O auxílio emergencial para os cidadãos não é considerado um repasse para os estados. Outras coisas, como postergação de dívidas, são ajudas financeiras, mas também não são repasses”, diz.
Quanto foi transferido para estados enfrentarem a covid?
O site Tesouro Transparente, mantido pela Secretaria do Tesouro Nacional, aponta que o governo federal gastou R$ 524 bilhões dos R$ 604,7 bilhões previstos para serem usados no combate à covid-19 em 2020. A maior parte desse dinheiro (R$ 293,1 bilhões) foi aplicada no auxílio emergencial. De acordo com esse portal, a União repassou R$ 44,3 bilhões para estados e R$ 30,8 bilhões aos municípios a título de auxílio financeiro. Além disso, em termos de despesas adicionais do Ministério da Saúde, foram transferidos R$ 9 bilhões para os governos estaduais e R$ 25,5 bilhões para prefeituras. Totalizando, assim, R$ 109,8 bilhões em transferências da União para governos subnacionais no ano passado.
O SIGA Brasil, painel de acompanhamento de contas públicas do Senado Federal, aponta que a União executou R$ 573,41 bilhões com o enfrentamento da pandemia de covid-19 em 2020 e 2021 (até o dia 02/06). Desse dinheiro, R$ 78,26 bilhões (o equivalente a 13,65% do total) foram transferidos para estados, municípios e para o Distrito Federal. O SIGA Brasil também aponta que a principal destinação de recursos para o enfrentamento à covid-19 em 2020 foi com o auxílio emergencial, que recebeu R$ 231,18 bilhões.
Segundo o portal LocalizaSUS, mantido pelo Ministério da Saúde, os valores de R$ 420 bilhões divulgados pelo governo federal não foram totalmente destinados ao enfrentamento da pandemia. Dos recursos voltados para a covid-19, em 2020, os estados receberam R$ 32,3 bilhões. Em 2021, até 1º de junho, foram R$ 5,4 bilhões. Somando os períodos, temos R$ 37,7 bilhões repassados exclusivamente para o combate à covid-19.
Os três portais apresentam os dados por ano consolidados, não é possível filtrar pelo que foi investido apenas até 15 de fevereiro, data citada pelo governo federal. Mas, em todos eles, o valor transferido para estados e municípios é inferior a R$ 420 bilhões.
Controvérsia
Desde janeiro, Bolsonaro e os governadores têm se desentendido em relação aos valores repassados pela União para o enfrentamento da pandemia. No final de fevereiro, o presidente chegou a divulgar o valor de R$ 600 bilhões enviado para os estados para serem aplicados na saúde (incluindo transferências obrigatórias e ajuda para a pandemia).
Em nota, 19 governadores contestaram os números. Eles alegam que o Planalto somou recursos como o Fundo de Participação dos Estados (FPE), o Fundo de Participação dos Municípios (FPM), o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e royalties, que já seriam enviados independentemente da vontade do presidente, porque esses repasses, inclusive os percentuais, são determinados pela Constituição.
Repasses eram obrigatórios?
Para o economista Carlos Eduardo de Freitas, a destinação de recursos para que os estados enfrentem a pandemia não era uma obrigação constitucional do governo federal, mas também não pode ser considerada um “beneplácito”.
“A União é responsável por todo o território nacional, então tem uma corresponsabilidade pela ordem financeira dos estados”, argumenta Freitas. “A União é a única que tem poder de emissão de moeda. Ela pode emitir dinheiro, desde que não esteja ferindo a capacidade de oferta da economia; já os estados, não. Por isso, a União tem a obrigação de repassar valores aos estados. Não está escrita na Constituição, mas está implícita. A União não pode permitir que os estados entrem em colapso”.
Por que investigamos?
Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos sobre a pandemia e sobre políticas públicas do governo federal que tenham viralizado nas redes sociais. Os dois temas são abordados na publicação analisada aqui. Verificações sobre a covid-19 são importantes porque podem levar as pessoas a adotarem medidas que impactam a sua saúde e segurança. No caso das divergências políticas entre o governo federal e os estados, também pode levar as pessoas a questionarem a orientação de autoridades de saúde.
A publicação no grupo em apoio a Bolsonaro teve 3,9 mil curtidas, além de 988 comentários e 2,5 mil compartilhamentos.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado de contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou ainda aquele que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
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