Manise Savah deixou o Haiti em 2010, após um grande terremoto

A viagem até o destino final foi longa, ela precisou passar pelas fronteiras do Peru e Equador até chegar ao Acre

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Mayara Souto
29/01/2024 01:09 - Atualizado em 29/01/2024 15:16
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A tristeza de perder muitos familiares no terremoto que devastou o Haiti, em 2010, fez Manise Savah deixar seu país, em 2014. “Estava muito difícil para mim morar lá”, relembra emocionada. A viagem até o destino final foi longa, ela precisou passar pelas fronteiras do Peru e Equador até chegar ao Acre, onde foi recebida em um abrigo.

O abalo sísmico, que Manise comenta, ocorreu na capital do Haiti, Porto Príncipe, e alcançou 7.3 na Escala Richter. Cerca de 230 mil pessoas morreram, um milhão ficaram desabrigadas e a infraestrutura das cidades devastadas. Nos meses seguintes, a nação passou também por uma epidemia de cólera, devido à situação precária do saneamento básico. Desde 2004, o país já enfrentava instabilidades políticas e sociais - quando houve um conflito armado interno no local que culminou em missões de paz feitas por organizações internacionais. Com os desastres naturais, a conjuntura ficou ainda pior e os fluxos migratórios aumentaram. Em 2012, o governo brasileiro lançou o Visto Humanitários para os haitianos, visando facilitar o processo de acolhida deles no país.

Trajetória Maniser refugiadas
Trajetória Maniser refugiadas (foto: teste)

Mãe solo, a haitiana veio acompanhada da filha — que tinha 8 anos — tentar construir uma nova vida. O primeiro estado em que as duas moraram foi o Rio Grande do Sul, nas cidades de Flores da Cunha e Caxias do Sul. Lá, Manise trabalhou em uma loja de móveis e informalmente como cuidadora de idosos.
Depois, em Goiânia, Goiás, Manise conseguiu ter a carteira assinada como cuidadora de idosos. Durante os três anos que morou no estado, nasceu um novo integrante da família. Ainda mãe solo, Manise precisa se virar para dar uma vida digna aos filhos e, para isso, abre mão até de noites de sono. Porém, mesmo quase sempre muito cansada, ela se empolga falando das conquistas dos dois. A filha mais velha, com 18 anos, faz faculdade, atualmente, na Universidade de Brasília (UnB). Já o filho de 6 anos terminou, no final do ano passado, a pré-escola.

“Para os meus filhos viverem bem, para não passarem a dificuldade que eu passei na minha vida. É para isso que eu me esforço. Eu me esforço muito muito muito. Eu quase não durmo porque eu trabalho à noite, um dia sim, um dia não”, relata a haitiana, sempre com um sorriso no rosto.

Enfermeira com experiência em hospitais e na organização Médicos Sem Fronteiras, no Haiti, desde que chegou ao Brasil, não consegue atuar em sua área. O mais próximo, até o momento, é trabalhar como cuidadora de idosos — ofício que é sua principal fonte de renda atualmente, em Brasília.

“Eu trabalhava no hospital, mas cheguei aqui e não dá para trabalhar na minha área. Agora estou fazendo o curso de novo. Estou fazendo o Técnico em Enfermagem, porque acho muito tempo passar 5 anos estudando de novo (o mesmo curso). Neste ano (2024) eu termino”, revelou aliviada a haitiana. Ela conta que chegou a tentar revalidar o diploma de seu país, mas que havia muitas documentações que ela não tinha e que também é caro.

A legislação brasileira prevê que diplomas estrangeiros podem ser revalidados por universidades públicas brasileiras, que possuam o curso superior correspondente. Para isso, é necessário pagar uma taxa de, em média, de R$ 2.500 — o valor varia por instituição de ensino. A espera longa para a finalização do processo também é um empecilho. O próprio site de revalidação dos diplomas estrangeiros, o Carolina Bori, aponta problema histórico no funcionamento do processo. “Não foram poucos os processos de validação que poderíamos definir como processos de trâmite de duração longuíssima, realizados em prazos inaceitáveis”, diz o texto.

Assim, para conseguir um certificado de Técnico de Enfermagem, a haitiana se desdobra em várias conciliando horas de estudo com o trabalho de cuidadora de idosos, os cuidados da casa e diversos cursos.

Manise é uma das 26 migrantes e refugiadas que participaram do curso de Atendimento e Vendas, do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), que faz parte do projeto Empoderando Refugiadas. A iniciativa é promovida em Brasília, Curitiba e Boa Vista pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), ONU Mulheres e Pacto Global da ONU no Brasil. Em Brasília, o curso é implementado pelo Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR),e foi durante as aulas do curso que o Correio conversou com a haitiana.
Visivelmente cansada, Manise sempre se mostrou muito empolgada em participar das aulas. E, para estar nelas, tinha uma rotina que parecia humanamente impossível.

“Desde ontem eu não vou em casa. Fui para o trabalho, saí de lá e peguei um ônibus para vir para cá”, contou a haitiana, que estava com a voz mais baixa que o normal, devido ao cansaço do plantão noturno. Ela ainda adiantou como seria o próximo dia, que acordaria cedo para ajudar uma amiga haitiana a vender roupas e calçados.

  • Manise refugiada
    Manise refugiada Ed Alves/C.B./D.A. Press
  • Manise refugiada
    Manise refugiada Ed Alves/C.B./D.A. Press
  • Manise refugiada
    Manise refugiada Ed Alves/C.B./D.A. Press

 

“Amanhã de manhã acordo às 4h para trabalhar com a Nádia, saio de lá e venho pra cá direto. Quando chegar em casa, de tarde, vou estudar para o técnico de enfermagem, fazer algumas coisas em casa e à noite vou trabalhar”, disse.

Perguntada sobre como ela conseguia conciliar tantos afazeres, ela respondeu rindo: “Quando você precisa e quer chegar em um lugar, você se esforça. Eu não gosto da minha situação, eu quero sair”. Já sobre estudar conteúdos similares duas vezes, ela sorri e afirma que é uma coisa que se faz “quando você ama”.
Outro amor de Manise é trançar cabelos. Ela conta que nem lembra como aprendeu a trançar cabelos, pois o hábito está enraizado na cultura haitiana. As tranças podem ser de diferentes tamanhos, texturas, cores, acessórios. A vontade dela é de abrir um salão para pessoas negras, com foco nas tranças.

Para isso, ela fez um curso de tranças no Brasil, já que precisa de um certificado comprovando a experiência de uma vida toda, e finalizou o de vendas promovido pela Acnur.

No dia da sua formatura, em dezembro de 2023, Manise estava radiante. Com uma peruca de cabelo loiro, diferente das tranças castanho escuro que usava nos outros dias, ela exibia no visual a versatilidade com que leva a vida. Junto às outras migrantes e refugiadas, era possível ver que ali se sentia acolhida e tinha uma rede de apoio, que ajudava a cuidar do filho, que também estava na cerimônia.

A longa estrada cheia de percalços parece ter objetivos muito nítidos para Manise e isso parece ser o combustível para ela aguentar a rotina acelerada. Pessoalmente, o desejo de trabalhar com a enfermagem é pulsante. Ela comemora que, neste ano, deve iniciar as aulas práticas e, a partir de maio, os estágios. Simultaneamente, ela diz que está cansada de trabalhar “para os outros” e quer investir em seu projeto de salão de beleza neste ano. Com uma conta nas redes sociais, ela compartilha os trabalhos que já fez e pretende atender clientes em sua nova casa. Fruto de tantas horas sem sono, Manise conseguiu conquistar sua casa própria por financiamento da Caixa Econômica Federal. Foram dez meses pagando dois “aluguéis” e, em fevereiro, ela deve ir para o seu novo lar.

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Reportagem: Mayara Souto | Edição: Andreia Castro | Coordenação: Carlos Alexandre de Souza e Mariana Niederauer| Fotos: Ed Alves | Vídeos: Arthur Ramos e Samuel Calado| Tecnologia: Patrick Lima e Vinícius Paixão


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