equidade no mercado

Pesquisadora da UnB estuda desafios de entregadoras por aplicativo do DF

Dissertação de mestrado de Kethury Magalhães dos Santos examina a fundo conquistas e dificuldades de motogirls integrantes do coletivo Moto Brabas, que reúne e fortalece mulheres do setor desde 2023

Júlia Giusti*
postado em 20/04/2025 06:00
A pesquisadora acompanhou o coletivo por dois anos para desenvolver o mestrado. Agora, aprofunda-se no tema em um doutorado -  (crédito: Carlos Vieira/CB/DAPress)
A pesquisadora acompanhou o coletivo por dois anos para desenvolver o mestrado. Agora, aprofunda-se no tema em um doutorado - (crédito: Carlos Vieira/CB/DAPress)

Formada em ciências sociais pela Universidade de Brasília (UnB), Kethury Magalhães dos Santos, 29 anos, desenvolveu uma pesquisa com trabalhadores de plataformas digitais em 2020, durante a graduação, com o objetivo de investigar as condições de trabalho da categoria no Distrito Federal. À época, a estudante entrevistou 39 motoristas e entregadores, dos quais apenas três eram mulheres, o que a levou ao desejo de se aprofundar na realidade delas nesse meio.

Ao perceber que os questionários aplicados "não deram conta das peculiaridades femininas" e que os estudos sobre mulheres que trabalham na área eram escassos, Kethury decidiu levar a pesquisa adiante para o mestrado, por meio de pesquisa etnográfica — método centrado na observação de um grupo social. O resultado foi a dissertação Meu capacete já viu muitas lágrimas: o trabalho feminino plataformizado a partir das experiências do coletivo Moto Brabas, defendida em fevereiro deste ano.

"Na pesquisa de 2020, em meio à pandemia de covid-19, me chamaram muito a atenção os relatos que elas traziam a respeito do assédio sexual e da violência de gênero. Eu fiquei muito inquieta, porque pensei: 'Como ninguém está olhando para esse problema?' Então, decidi fazer um projeto que contemplasse só as mulheres entregadoras", explica a pesquisadora, que pretende aprofundar o tema no doutorado.

Inicialmente, ela diz que encontrar essas mulheres foi desafiador, mas tudo mudou em 2023, quando acompanhou uma audiência pública na Câmara Legislativa que discutiu as condições de trabalho dos entregadores no DF. Na ocasião, ela conheceu o Moto Brabas, coletivo de motoqueiras — ou motogirls, como se autodenominam — e pôde acompanhar, entre 2023 e 2024, o crescimento do grupo de WhatsApp das entregadoras, bem como as reuniões presenciais, além de fazer entrevistas com algumas delas.

Criado em 2023, o coletivo Moto Brabas começou com apenas 20 integrantes e hoje conta com 130 entregadoras
Criado em 2023, o coletivo Moto Brabas começou com apenas 20 integrantes e hoje conta com 130 entregadoras (foto: Minervino Júnior/CB/D.A Press)

Carolina Souza, 44, é uma das líderes do Moto Brabas e conta que o coletivo surgiu em 2023, por meio de uma iniciativa da Associação dos Trabalhadores por Aplicativos e Motociclistas do Distrito Federal e Entorno (Atam). A ideia era formar turmas exclusivamente femininas no programa Anjos de Capacete do iFood, que capacita entregadores para atuar em primeiros socorros e na prevenção de acidentes.

Então, Carolina, trabalhadora no ramo há cinco anos, começou a convidar mulheres entregadoras a participar do curso, o que, aliado à divulgação em redes sociais, levou à criação de um grupo no WhatsApp. "Desde aquele dia, as meninas tomaram muito amor pelo grupo. Quando uma mulher vê outra entregando, pergunta se ela participa da comunidade e já me pede para adicioná-la. E aí, devagarzinho, a gente vai só crescendo. Começamos com apenas 20 pessoas e, hoje, temos cerca de 130 participantes", relata.

Desafios

Os setores de transporte e delivery são majoritariamente masculinos. Segundo a Secretaria Nacional do Trânsito (Senatran), as mulheres são apenas 6,5% dos motoristas de caminhão no Brasil. Dados do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento mostram, ainda, que elas representam somente 3% do total de trabalhadores por aplicativo, que chega a 1,6 milhão no país. 

Com isso, o mercado de trabalho é discriminatório em relação às mulheres entregadoras, somado ao racismo, etarismo e assédio. Entre os resultados da pesquisa de Kethury, ela destaca que a maior parte do Moto Brabas é composta por mulheres negras periféricas, na faixa etária de 26 a 33 anos; grau de escolaridade médio ou superior; jornadas de 70h a 90h e seis dias semanais, sendo que muitas tiveram a trajetória marcada pela informalidade, buscando, com as entregas, melhores oportunidades de trabalho e de renda durante a pandemia.

Nesse contexto, a falta de infraestrutura para higiene, discriminação racial em estabelecimentos, situações vexatórias com clientes, preconceito com a idade, sexismo, assédio sexual e acidentes de trânsito são outros desafios enfrentados pelas motogirls. Carolina, por exemplo, entregadora do hospital Sírio Libanês e do iFood, descreve dois episódios marcantes. 

Carolina Souza se preparando para uma entrega
Carolina Souza, 44: "Foi difícil, mas nos adaptamos" (foto: Fotos: Arquivo pessoal)

"Uma vez, após usar o banheiro de um restaurante, a gerente brigou comigo, (disse) que não era mais permitido motoboy ali, porque o banheiro estava ficando imundo. Ela foi muito grosseira na frente de todo mundo, fiquei com tanta vergonha que eu queria entrar no buraco, me senti um lixo", compartilha, abalada. Outra situação desrespeitosa vivida por Carolina foi quando subiu em um apartamento para entregar o pedido, e o cliente não queria deixá-la ir embora.

"Quando ele viu que faltava algo no lanche, me chamou de ladra e trancou a porta, quase me bateu. Consegui sair, mas ele me puxou pelo casaco e me seguiu até a moto, gritando. Abri o baú e mostrei que não tinha nada lá, mas ele montou na moto e disse que eu não sairia. Então, tive que ligar para a polícia", expõe, indignada ao lembrar. Para ela, esses e outros episódios são frequentes pelo fato de ser mulher.

Gisely de Sousa: "Ser motogirl é um desafio com sabor de liberdade"
Gisely, 28: "Ser motogirl é desafio com sabor de liberdade" (foto: Arquivo pessoal)

Gisely de Sousa, 28, também começou a trabalhar como entregadora do iFood na pandemia, após ser demitida do emprego com carteira assinada no comércio. Ela participa do coletivo desde a sua criação e, assim como Carolina, relata diversos desafios pela falta de infraestrutura, como espaços para encher a garrafa d'água e banheiros — um problema, principalmente, no período menstrual. "Foi bem difícil no começo, mas, como não tem como mudar, nos adaptamos." 

No momento, Gisely conta que sua maior dificuldade é conciliar a necessidade de sustento com a tarefa de criar a filha de um mês e meio. "Na gravidez, trabalhei até 12h por dia e tive uma moto roubada. Agora, deixar minha bebê para trabalhar corta meu coração, além das noites mal dormidas. No decorrer do dia, meus seios vazam e empedram, mas o que mais me dói é a saudade dela", compartilha.

Já Stefane Martins, 30, que escolheu a profissão em 2021 pela flexibilidade, após vencer um quadro de depressão e ansiedade, acredita que o maior desafio é lidar com o trânsito: "Saio de casa pedindo a Deus que me proteja e me guarde por onde andar". Em 2023, ela diz que sofreu seu pior acidente de moto, ficando 44 dias sem poder trabalhar. Felizmente, ela superou o ocorrido com o apoio da esposa, que hoje a acompanha nas entregas.

Stefane Martins: "A união descreve o grupo"
Stefane Martins, 30, teme o trânsito pois já se acidentou (foto: Arquivo pessoal)

Convivência

Para as motogirls do Moto Brabas, o grupo não é só um meio que aproxima colegas de profissão, mas um ambiente seguro de troca de experiências. Quando uma das integrantes se envolve em acidente de trânsito ou tem problemas com a moto, por exemplo, as outras costumam fazer uma rifa para ajudá-la na recuperação, seja da saúde, seja no conserto do instrumento de trabalho. Elas também mantêm o hábito de conversar sobre suas realidades de vida e de se reunirem no parque para um café da manhã coletivo. 

"Não é só um grupo de motos, são mulheres que ajudam outras mulheres. Muitas vezes, me acalmei de crises de ansiedade conversando com as meninas de lá, são como uma família", percebe Gisely. Para Stefane, o Moto Brabas é essencial para o crescimento das participantes: "Conversamos muito sobre vários aspectos e visões de futuro, estamos sempre ajudando umas às outras no que podemos. A união descreve o grupo." 

Liberdade

Para as mulheres do coletivo, o aspecto mais importante do trabalho é a autonomia, rompendo com a exclusiva associação da profissão aos homens. Carolina diz que pensa em deixar as entregas em razão do perigo no trânsito, mas não se vê fora do ramo pelo carinho com as colegas. "Não é pela profissão, porque não vou ficar rica com isso, mas pelo calor humano e pela união com as meninas, que são como irmãs", conta, emocionada. 

O grupo das Moto Brabas é um espaço seguro para troca de experiências entre as entregadoras
O grupo das Moto Brabas é um espaço seguro para troca de experiências entre as entregadoras (foto: Minervino Júnior/CB/D.A Press)

Para Stefane, que tem o sonho de ingressar na carreira policial, ser motoqueira é um trabalho temporário, por meio do qual foi possível concluir a faculdade de gestão pública e, agora, permite que ela se dedique aos estudos para alcançar seu objetivo. "Sou muito elogiada por onde passo. Uma senhora, inclusive, perguntou onde comprei minha blusa do grupo", diverte-se. 

Na visão de Gisely, ser motogirl significa força e resiliência: "Tenho orgulho de todas as mulheres que estão nessa profissão, mesmo sem o devido reconhecimento. Isso é muito mais do que só montar em uma moto e pilotar, é um desafio diário com sabor de liberdade."

*Estagiária sob a supervisão de Marina Rodrigues

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