PIONEIRAS

A trajetória de brasileiras que transformaram o mercado e fomentaram a equidade

Para fechar o Mês das Mulheres, o Correio entrevistou quatro referências que conquistaram lugares antes inimagináveis para a parcela feminina no país, pavimentando caminhos e abrindo portas para inúmeras outras brilharem na vida profissional

Raphaela Peixoto
postado em 30/03/2025 00:01 / atualizado em 30/03/2025 17:02
Sonia Guimarães, Erika Hilton, Márcia Abrahão e Luciana Mariano são os destaques do Trabalho&Formação desta semana, reconhecidas pela competência, coragem e determinação em suas respectivas áreas  -  (crédito: Editoria de Arte)
Sonia Guimarães, Erika Hilton, Márcia Abrahão e Luciana Mariano são os destaques do Trabalho&Formação desta semana, reconhecidas pela competência, coragem e determinação em suas respectivas áreas - (crédito: Editoria de Arte)

No mês em que se fomenta a luta das mulheres por direito e equidade de gênero, o Correio reuniu a trajetória de mulheres pioneiras no país. Em seus relatos, elas destacam que, décadas após as conquistas estabelecidas na Constituição de 1988, as mulheres ainda enfrentam desafios, como a desigualdade salarial, obstáculos no mercado de trabalho, sub-representação em cargos de liderança e índices alarmantes de violência de gênero.

A reportagem ouviu Sonia Guimarães — primeira negra doutora em física no Brasil e primeira negra professora no Instituto de Tecnologia Aeronáutica (ITA) —, a deputada federal Erika Hilton — primeira mulher trans e negra a ocupar uma cadeira no Congresso Nacional —, a professora aposentada do Instituto de Geociências da Universidade de Brasília Márcia Abrahão — primeira reitora da instituição —, e a narradora esportiva Luciana Mariano — primeira brasileira a narrar uma partida de futebol. Confira, nesta edição, a trajetória profissional dessas pioneiras.

Sonia Guimarães: "Sempre tinha alguém dizendo que eu não servia"

Sonia Guimarães, 1ª negra doutora em física no BR 1ª negra professora no Instituto de Tecnologia Aeronáutica (ITA)
Sonia Guimarães, 67 anos, foi a primeira negra doutora em física no Brasil e primeira negra professora no ITA (foto: Divulgação)

Em um artigo publicado em 2018 no jornal O Globo, em parceria com a ONU Mulheres, o Fundo Elas, a Fundação Carlos Chagas e o Instituto Unibanco, foi abordada a exclusão das mulheres das ciências exatas e das tecnologias. Segundo o texto, essa exclusão tem raízes na infância e no ambiente escolar, onde a socialização das meninas é fortemente orientada pelos papeis tradicionais de gênero. Isso perpetua a manutenção das mulheres em posições subalternas, enquanto os homens ocupam posições de poder e prestígio na sociedade.

A primeira mulher negra doutora em física no Brasil, Sonia Guimarães, não escapou dessa realidade. Em relatos de sua trajetória, ela revela que o ingresso das mulheres negras nas ciências exatas e o desenvolvimento de suas carreiras são obstáculos ainda mais desafiadores. Sonia compartilha que, durante o ensino médio e a graduação, foi constantemente desmotivada, ouvindo que não se tornaria uma física. "Sempre tinha alguém dizendo que eu não servia, que não era inteligente o suficiente. Mas parece que essas palavras não se fixaram em mim. Definitivamente, não grudaram", afirma.

Além das dificuldades para entrar no meio acadêmico, como a escassez de bolsas de pós-graduação, Sonia destaca a falta de oportunidades no mercado de trabalho. "Eu nunca conheci um chefe do departamento de física negro, todos os chefes são homens brancos e, na hora da contratação, eles preferem contratar homens brancos. Mesmo com doutorado, você tenta trabalhar e não consegue. Isso é muito frustrante e desmotiva qualquer pessoa", lamenta. Ela ainda faz um apelo: "Continuo insistindo para que as meninas não desistam."

Formada com PhD pela Universidade de Manchester, no Reino Unido, Sonia ingressou no corpo docente do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) em 1993, em um momento em que a instituição sequer aceitava mulheres entre seus alunos. Ela foi não só a primeira mulher negra, mas também a primeira mulher no departamento de física do instituto, onde se destacou com suas pesquisas sobre semicondutores e sensores de calor.

Ao longo dos anos, sua trajetória acadêmica e profissional se consolidou, levando-a a conquistar prêmios e homenagens. Em 2025, Sonia foi reconhecida pela revista Forbes como uma das mulheres mais poderosas do Brasil. Em 2023, foi eleita uma das 100 pessoas mais inovadoras da América Latina pela Bloomberg Línea e recebeu a Medalha Santos Dumont de Honra ao Mérito pelos seus 30 anos de contribuição no ITA.

Márcia Abrahão: "Os homens acham que nós não sabemos o que estamos fazendo"

Márcia Abrahão, 60, foi a primeira mulher a ocupar o cargo de reitora da Universidade de Brasília (UnB)
Márcia Abrahão, 60, foi a primeira mulher a ocupar o cargo de reitora da Universidade de Brasília (UnB) (foto: Beto Monteiro/Secom UnB)

A expressão "teto de vidro" ou "glass ceiling", usada pela primeira vez pela norte-americana Marilyn Loden na década de 1970, faz referência aos obstáculos que impedem que mulheres cheguem aos cargos de liderança onde trabalham independentemente das suas qualificações. Uma pesquisa da Universidade de Brasília (UnB)  sistematizou os principais obstáculos enfrentados por mulheres para ocupar cargos da alta gestão na administração pública federal. O estudo entrevistou 70 mulheres que ocupam ou já ocuparam esses postos.

Segundo a pesquisa, os principais desafios enfretados por mulheres no ambiente de trabalho pelo fato de ser são: discriminação por gênero (160 menções), assédio moral (120 menções) e a sobrecarga de trabalho doméstio (mais de 120 menções). Já em relação aos fatores que dificultam a ascenção a um cargo de chefia, as mulheres citaram a discriminação por gênero, dificuldades em conciliar o trabalho com a maternidade e a sobrecarga de trabalho doméstico. 

Essa demora para uma mulher ser promovida a cargo de lideranças é notada na história da Universidade de Brasília, tendo em vista que a primeira reitora da instituição, a professora e pesquisadora Márcia Abrahão, foi eleita em 2016. Ela ocupou o cargo durante dois mandatos, sendo o último finalizado em 2024. Segundo a docente, ocupar o cargo máximo da universidade foi uma consequência natural. Ela também credita essa conquista ao trabalho desempenhado na universidade

A relação de Márcia com a UnB é desde 1982, quando ingressou no curso de geologia. Durante esse período, a professora intercalou as atividades acadêmicas — fez mestrado e doutorado na UnB — com as administrativas. Ao longo de sua trajetória profissional e acadêmica, enfrentou frequentemente o machismo, até mesmo como reitora. "Como eu sou geóloga e fui a primeira diretora do Instituto de Geociências (IG) eleita, eu já estava acostumada com o mundo dominado por homens e para homens." 

A ex-reitora relata que a sociedade lida de várias maneiras com as mulheres que atravessam o chamado "teto de vidro". Há quem branda com a conquista — e, segundo ela, isso abre portas —, mas também existe uma cobrança maior quando se comparado a homens que ocupam a mesma posição. "Não é fácil ser mulher em cargos de poder. Os homens acham que nós não sabemos o que estamos fazendo. O tempo inteiro você é observada, avaliada, e se nós formos mais assertivas, somos chamadas de muito grosseiras. Já os homens, se eles são mais assertivos, são vistos como firmes", pontua.

Sobre a importância da presença feminina em cargos de liderança, ela ressalta o exemplo que fica para outras meninas "mostrando para as mulheres onde elas podem chegar". Ela também chama atenção para o fato de que essa presença não "necessariamente significa que a mulher vai fazer uma gestão que honre as mulheres". Entre as diversas ações voltadas à equidade intuídas em sua gestão, Márcia destaca a criação de uma creche e da sala de amamentação na universidade e a ampliação do tempo de pós-graduação. "Eu me orgulho bastante de todo esse legado e espero que tenha continuidade."

Erika Hilton: "A presença das mulheres na política é uma conquista histórica de luta"

Erika Hilton, primeira deputada federal negra e trans eleita na história do Brasil
Erika Hilton, 32 anos, foi a primeira deputada federal negra e trans eleita na história do Brasil (foto: Divulgação)

Quase 100 anos depois da conquista do voto feminino no Brasil, dados da União Interparlamentar (UIP) mostram que pouco se avançou em relação à igualdade entre homens e mulheres. Segundo o levantamento, com a quantidade de mulheres eleitas ao Congresso a cada quatro anos, serão necessários 80 anos para que se atinja a equidade de gênero no Senado e na Câmara. Ainda de acordo com o relatório, o Brasil figura na 133ª colocação no ranking de representatividade nos Parlamentos. 

Em 2022, foi registrado o melhor desempenho de mulheres eleitas no Congresso Nacional, contudo, as mulheres ocupam nem a metade dos espaços de poder na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, mesmo representando 52% do eleitorado brasileiro. Das 513 cadeiras de deputados, 91 foram ocupadas por mulheres (18%). No caso do Senado, entre os 27 deputados eleitos, apenas quatro eram mulheres (14%). 

Do quantitativo de mulheres eleitas na Câmara, duas são trans, fato inédito no Congresso. Uma delas é Erika Hilton — a primeira deputada federal negra e trans eleita na história do país e também a primeira parlamentar transexual a liderar uma bancada no Legislativo. Anos antes, em 2020, ela também conquistou o feito de ser primeira mulher transgênero eleita vereadora em São Paulo e a mulher mais votada do Brasil, com 50.508 votos. 

Segundo a deputada, tornar-se um dos principais nomes da política nacional não foi algo imaginado, mas, sim, construído. "Eu era uma travesti negra vinda da periferia, expulsa de casa, vivenciado a prostituição, trazendo a sua história de vida, os seus desafios como plataforma de enfrentamento à desigualdade, ao fascismo, ao preconceito, à intolerância e num momento aonde parecia que o mundo estava virando as costas para essas agendas, em especial no Brasil." 

Detentora de uma oratória elogiada e dita como forte, a deputada diz ser um "desafio gigantesco" ser ouvida em um Congresso descrito por ela como "silenciador, machista e transfóbico". "É muito difícil porque tentam silenciar a minha voz o tempo todo, seja através das ameaças de morte que fazem, seja através dos afrontes dentro da própria Câmara, mas eu me mantenho de pé, falando, gritando quando necessário e bradando, porque a minha voz e o meu grito não são só meus", diz Erika.

Leia também: Artigo: Inclusão e equidade no mercado de trabalho: uma agenda nacional

A parlamentar afirma que não deseja ser inserida em uma "caixinha", pois foi eleita não apenas para representar a comunidade LGBTQIA+, mas, sim, para defender um projeto de país que acolha todos os brasileiros. "Eu não sou a deputada das trans, dos gays, das mulheres, dos negros e negras. Eu sou deputada do Brasil. Minha preocupação é com o país como um todo", explica. 

Atualmente, Erika busca aprovar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que acaba com a escala de trabalho 6x1. A PEC foi protocolada em fevereiro, após a deputada reunir 234 assinaturas, inclusive, de outros espectros políticos. "Eu me sinto honrada, feliz e fazendo um trabalho importante de conscientização no país, pois tratar sobre identidade é também tratar sobre essas pautas", defende

Luciana Mariano: "A gente pode, sim, ficar velha, como os caras ficam e sermos prestigiadas do jeito que eles são"

Luciana Mariano, primeira narradora de futebol da televisão brasileira, trabalhando atualmente nos canais ESPN
Primeira narradora de futebol da televisão brasileira, Luciana Mariano, 49, trabalha nos canais ESPN (foto: Arquivo pessoal)

A participação de homens e mulheres na força de trabalho no Brasil ainda é desigual. De acordo com o último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente a 2022, 53,3% das mulheres estão inseridas no mercado de trabalho, enquanto a taxa masculina é de 73,2%. O estudo também revela uma disparidade salarial para funções equivalentes: mulheres em cargos de gerência recebiam, em média, R$ 6.600, valor 21,2% inferior ao rendimento dos homens, que era de R$ 8.378.

Essa disparidade de gênero fez com que Luciana Mariano, a primeira mulher a narrar um jogo de futebol no Brasil, tivesse de congelar parte da carreira por cerca de duas décadas. "Me afastei da narração não porque eu queria, mas por falta de oportunidade. Aí, quando ESPN me contratou, outras emissoras falaram: 'Epa, nós temos que ter também'. E a gente tem, pela primeira vez na história da humanidade, uma safra inteira de narradoras que estão espalhadas pelas emissoras e pelos canais de streaming."

Quase 30 anos depois de sua estreia na narração, Luciana diz que tem consciência da importância daquele feito. "Hoje, quando olho para aquela Luciana, eu penso: 'Gente, eu não sabia nada' e fiz. Mas assim, demandou muita coragem, muito esforço. É claro que eu não tinha o feedback imediato como eu tenho hoje nas redes sociais, mas ainda assim, eu sabia que estava fazendo uma coisa que nunca uma mulher tinha feito, então a pressão era gigante", relata a comunicadora.

Também na luta contra o etarismo, Luciana afirma que a "estrutura" exige que as mulheres precisam ser bonitas e jovens.  "A gente pode, sim, ficar velha, como os caras ficam, e ser prestigiada do jeito que eles são. Um cara com 33 anos de carreira, certamente, acumulou um bom patrimônio durante a vida. E se você comparar com o que eu acumulei, é ridículo. Então, proporcionalmente, a vida de narradora não é igual à vida de um narrador."

Direito das mulheres no Brasil

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a assegurar a igualdade de gênero perante a lei, fruto de mobilização por parte de um grupo de parlamentares conhecido como "Bancada do Batom" — composto por 26 deputadas e senadoras eleitas em 1986 para a Assembleia Nacional Constituinte — durante o processo de elaboração do novo texto constitucional.

À época, elas redigiram uma carta que simboliza o elo entre o Poder Legislativo e os movimentos sociais feministas. O texto, elaborado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e apresentado ao presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, listava as principais reivindicações da luta feminina no país.

Cerca de 80% das propostas contidas nesse documento foram incorporadas ao texto constitucional, garantindo às mulheres importantes direitos, como a licença-maternidade de 120 dias, a proteção no mercado de trabalho e a proibição de discriminação salarial, de acesso a funções e de critérios de admissão.

Além disso, a nova legislação estabeleceu novas responsabilidades para o Estado brasileiro, criando a obrigação de implementar políticas públicas voltadas para a proteção e promoção dos direitos das mulheres na sociedade. Um trecho da carta dizia: "Nós, mulheres, estamos conscientes que este país só será verdadeiramente democrático e seus cidadãos e cidadãs verdadeiramente livres quando, sem prejuízo de sexo, raça, cor, classe, orientação sexual, credo politico ou religioso, condição física ou idade, for garantido igual tratamento e igual oportunidade de acesso às ruas, palanques, oficinas, fábricas, escritórios, assembleias e palácios."

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