
O geógrafo Aldo Paviani, 91 anos, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), é mais que pioneiro: respira e inspira a cidade que escolheu para viver e estudar. Detalhes da construção e transformação do Plano Piloto, assim como da evolução da capital, que hoje abriga outras 34 regiões administrativas, borbulham com precisão e vivacidade na mente do pesquisador.
Gaúcho de Erechim, na região do Alto Uruguai, é o caçula de Adélia e Narciso, que trabalhou cortando pedras de basalto para construir o edifício que hoje abriga uma vinícola. "No município, tem um lugar que, quando o rio Uruguai está muito baixo, você fica com um pé no Rio Grande do Sul e o outro, em Santa Catarina", conta, bem- -humorado, mas lamenta nunca ter tido a chance de testemunhar o fenômeno. O irmão mais velho, Mansueto, mora até hoje na cidade natal. "É um irmão espetacular, porque ele se sacrificou para eu fazer faculdade. Ficou cuidando dos meus pais", emociona-se.
Seu Narciso morreu aos 82 anos e Adélia, aos 76. "Acho que a vida deles até foi bastante longa, porque tinha um esforço físico grande. Mas sempre, minha mãe, mais do que meu pai, quiseram que eu estudasse", relata. O pai também era fotógrafo e eternizou um momento difícil para a família, a perda da irmã, que morreu logo após o nascimento. "Ele fotografou a menina que faleceu, foi uma pena. Queria tanto ter tido uma irmã, ou duas", sorri Aldo, com ternura.
A primeira experiência como professor foi no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), já em Porto Alegre, enquanto cursava geografia e história na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Ainda registrou uma passagem como contabilista na Contadoria-Geral do Rio Grande do Sul e foi nomeado secretário de uma escola em Canoas, município cerca de 20km distante da capital gaúcha, à noite. "Eu saía das aulas na PUC correndo, pegava o ônibus e ia abrir a escola."
Amor para recordar
A mudança para Santa Maria teve como motivação o amor pela também professora Therezinha Isaia Paviani. Os dois se conheceram em Porto Alegre. "Ela ia passando na rua da praia, toda de vermelho, e me encantei, fui acompanhando", recorda-se, com riqueza de detalhes. Quando Therezinha passou em frente a um bar, Aldo se aproximou e perguntou: "A senhora quer um refrigerante?". A resposta veio certeira: "Mas você é muito atrevido!", observou Therezinha. O professor relembra o encontro aos risos, e diz que ela aceitou um Guaraná. O desfecho, Brasília conheceu muito bem.
O casal, que por meses manteve um namoro a distância e por cartas, se casou na escola de freiras onde ela dava aulas e, anos depois, seria pioneiro na UnB. Therezinha era bióloga e participou da criação de ao menos dois departamentos na federal. Aldo, por sua vez, é um dos responsáveis pela criação da Geografia tanto em Brasília quanto na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde ambos lecionaram. "Isso é uma coisa que ninguém me tira. Eu gosto de criar coisas", atesta.
"Eu vim de Santa Maria requisitado pela UnB", relata, detalhando o processo, que ocorreu durante a ditadura militar. Mudou-se com a mulher para a nova capital em 1969, com a missão de ficar por um ano. Foi preciso convencê-la. O argumento de que seria um ponto central para as viagens que o casal sempre adorou fazer funcionou. Um ano viraram dois, que viraram quatro e se tornaram uma vida inteira de dedicação e de pioneirismo na capital da República.
Therezinha morreu em 31 de outubro de 2014, por complicações causadas pela doença de Parkinson. "Eu sempre digo que, em vez de fazer tanta bomba, Estados Unidos, Rússia e China deveriam descobrir um medicamento, um modo de acabar com o Parkinson."
Destino
A UFSM não aceitou fácil a permanência de Aldo e de Therezinha na UnB. Houve protestos. Mas uma lei amparava a escolha, permitindo que se habilitassem pela origem ou pelo destino. E Brasília se tornou o destino do jovem casal. "Cheguei aqui em 1º de julho de 1969. E não retornei mais para o Sul." As visitas à terra de origem são frequentes, no entanto, para ver Mansueto, hoje com 95 anos. As filhas, Cilene, Lúcia e Sílvia, são as companheiras nessas empreitadas.
Naquele início da década de 1970, Brasília se erguia e a UnB, também. "Para se ter uma ideia, o estacionamento da Ala Sul do Minhocão era todo em terra e o próprio Minhocão só ia até a entrada principal", relembra-se Aldo, sobre a construção do Instituto Central de Ciências (ICC), principal edifício do primeiro câmpus da UnB, o Darcy Ribeiro, na Asa Norte.
Guindastes se espalhavam pela universidade, carregando as vigas que completariam o tradicional prédio. Alguns outros, como o da Faculdade de Educação e o das engenharias, também estavam finalizados. "Era um poeirão que só vendo", conta o professor. Pelo resto da cidade, o cenário não era muito diferente. A Asa Norte tinha apenas uma pista, ida e volta, e as casas eram barracos de madeira. Em agosto 1974, Aldo estava na plateia do 1º Seminário de Estudos dos Problemas Urbanos de Brasília, com a presença do urbanista Lucio Costa, criador do projeto da capital. Ele se emocionou ao ver o resultado, conta Aldo. "Fez um discurso, chorou, porque não imaginava que Brasília fosse se desenvolver tanto. Estava muito contente."
Foi o senador paraense Cattete Pinheiro, presidente da então Comissão do Distrito Federal, quem convenceu o urbanista a participar do evento. "Como é que pode? Como é que vocês conseguiram fazer tanta coisa? A impressão que levo é de espanto. É fantástico! É uma coisa comovente sentir essa cidade viva como está. Brasília é bela. Brasília tem tudo para ser uma grande cidade", disse Lucio Costa no Senado lotado. "Os senhores me deem um pouco de tempo porque estou emocionado", relembra reportagem do Correio da época.
As conferências e os debates duraram cinco dias. Em agosto do ano passado, para celebrar os 50 anos do emblemático encontro, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) sediou o 2º Seminário sobre os Estudos dos Problemas Urbanos de Brasília.
Legado
Ao longo da carreira, Aldo Paviani formou mais de mil alunos — essa é a conta que consegue fazer de forma ligeira. Mas a vocação para ensinar e a generosidade em compartilhar o conhecimento permanecem. O professor repete as explicações pacientemente, e reforça pontos de vista que considera essenciais, inclusive em artigos publicados no Correio.
Apesar de ter se aposentado em 1996, Aldo Paviani contribui, sempre que é chamado, com o Núcleo do Futuro e no Núcleo de Estudos Urbanos Regionais do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam) da UnB.
Aldo fundou o núcleo ao lado do professor Isaac Roitman, que morreu no último dia 7, aos 86 anos, uma parceria que se transformou em grande amizade. "Ele me chamava de irmão e eu o chamava de irmão. Fiquei tristíssimo de vê-lo morrer", lamenta.
O geógrafo foi eleito diretor do Ceam e também assumiu um mandato à frente do Instituto de Ciências Humanas. No currículo, conta que ficou faltando apenas uma cadeira no decanato. Mas as condecorações se acumulam: é Cidadão Honorário de Brasília, pela Câmara Legislativa do DF, e Oficial da Ordem do Mérito Legislativo da capital federal.
Dos momentos marcantes em mais de 25 anos de docência na UnB, ele se lembra de acontecimentos do período de ditadura militar. Em um dos episódios, uma aluna foi retirada à força da sala de aula e implorava ajuda ao professor enquanto era carregada. "Nós entrávamos ali pelo Minhocão Norte e havia uma fileira de soldados com fuzil e baioneta. Ficávamos muito constrangidos de passar por ali e ir dar aula." "Na UnB houve uma repressão forte e isso que me calou muito fundo", revela.
"Quando eu cheguei, a Geografia era no Minhocão Sul, no subsolo, porque era junto de Geociência. Dava para sentir o cheiro da pólvora da arma do militar que atirou em um estudante. Acho que o que me deixou mais triste foi isso", afirma.
Um aluno o denunciou à época, quando Amadeu Cury estava na Reitoria e José Carlos de Almeida Azevedo, na vice, dizendo que o professor era comunista. O episódio ocorreu depois de Aldo dar uma nota baixa ao discente e reprová-lo por excesso de faltas. "Ele confundiu crítica com comunismo", diz. Azevedo estava pronto para assinar a demissão quando o reitor interveio e disse que perder Aldo significaria perder também Therezinha Paviani. E assim o casal permaneceu junto e na UnB.
Futuro
Pensar o futuro é uma habilidade que Paviani desenvolveu ao longo da carreira. Como educador, as impressões que carrega sobre o ensino no Brasil têm um tom crítico, mas esperançoso. O principal gargalo que aponta é a evasão, especialmente no ensino médio. "O Brasil é muito fraco em termos educacionais. Então, para mudar esse modelo, é necessário mudar esse circuito. Quando chega ao ensino médio, a pessoa cai fora para trabalhar. Tinha de haver uma maneira melhor de dar continuidade. Perde-se talentos", avalia.
A importância da qualificação, ele tira da própria carreira, depois do mestrado e doutorado no Brasil, Aldo teve a oportunidade de fazer o pós-doc em Austin, no Texas, no início da década de 1983. A trajetória foi interrompida em razão do diagnóstico da mulher. "Nós sempre fomos companheiros. Onde eu ia, lá estava ela", recorda-se.
Em outra oportunidade, o casal se mudou para Lisboa. Aldo havia sido contemplado por uma bolsa do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal e Therezinha passou a estudar plantas africanas de Angola e Moçambique, por se tratarem de vegetações também tropicais. "Faz parte da educação ter pesquisa. Eu acho que está muito equivocado o ensino em que a pessoa assiste à aula, faz prova, pega o diploma e vai embora. Precisa ter mais conhecimento de pesquisa, conhecer a realidade", defende.
Isso, Aldo ensinou a seus alunos com maestria. Ele inaugurou as aulas de campo no Departamento de Geografia da UnB. Levava os estudantes num ônibus para a recém- -inaugurada Ceilândia, Taguatinga, Brazlândia, Gama e Sobradinho.
"Nossas pesquisas sempre eram na periferia, exatamente para o aluno entrar em contato. Mais do que um nunca havia estado lá." Nesse ponto, a visão de Paviani é crítica. "Isso é uma coisa de que eu não gosto no futuro da educação: o estudante que passa quatro, cinco anos na universidade e não dá um retorno. Ele deve voltar e dar uma aula ou duas sobre a experiência profissional dele, dar um retorno. É um estudo de graça. Quer dizer, ele tem um certificado educacional de muito valor e não retribui. Essa minha ideia tem mais de 20 anos e ninguém implementa: um programa pelo qual um aluno volta e retribui", atesta o pioneiro.
E se ser professor é dar o exemplo, Aldo o fez com excelência, sem nunca deixar de lado a missão incansável de ensinar e de compartilhar o conhecimento, em retribuição a tudo aquilo que a academia lhe legou. "A educação foi tudo na minha vida."
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