O que começou como um trabalho de conclusão de curso (TCC) do estudante de direito Richard Henrique Coátio de Souza, 25 anos, transformou-se em um livro de impacto social e político. Em meio às mobilizações pela redução da jornada de trabalho no país, a obra, intitulada Escravidão Contemporânea: A Escala 6x1 no Brasil, foi lançada oficialmente em dezembro na Universidade de Brasília (UnB), abordando, de forma embasada e multidisciplinar, a origem e os efeitos da jornada de trabalho de seis dias consecutivos com um dia de descanso. O autor analisa aspectos históricos, econômicos e psicológicos do direito trabalhista e propõe a redução da carga horária semanal como um passo para a dignidade no trabalho.
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"A escala 6x1 pode ser considerada uma prática escravista contemporânea, à medida que retira do trabalhador o seu direito ao descanso, expondo-o a uma jornada exaustiva", pontua Richard. Ele explica que a proposta de redução da jornada está em consonância com as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e visa alinhar o Brasil ao cenário internacional. "Se adotada, essa medida reafirmaria o compromisso do país com os direitos humanos no trabalho e traria benefícios para os empregados, os empregadores e a economia como um todo", afirma.
Realidade
A escolha do tema surgiu das experiências pessoais de Richard, que observou que pessoas próximas enfrentavam longas jornadas e sofriam com a falta de tempo. "Era frustrante tentar marcar encontros com amigos que nunca podiam porque trabalhavam o dia todo ou tinham folgas em horários e dias incomuns. Vi isso se repetir também com familiares, que trabalharam a vida inteira sem ter tempo para lazer, descanso e convivência social. Daí surgiu em mim uma inquietação e até uma raiva dessa situação", relata.
A partir dessa angústia, ele decidiu abordar a pauta, inicialmente como TCC. No entanto, com ampliação dos debates no Congresso Nacional, motivada pela proposta de emenda à Constituição (PEC) que sugere o fim da escala 6x1, de autoria da deputada federal Erika Hilton (Psol-SP), Richard percebeu a urgência do assunto e decidiu publicar o estudo antes, em formato de livro. "Meu objetivo foi munir parlamentares e a sociedade com argumentos sólidos para defender a classe", conta.
Escravidão
Uma das propostas da obra, segundo o autor, é analisar historicamente a construção do direito do trabalho no mundo. "Enquanto a humanidade já tinha passado pelas mais variadas experiências históricas em relação a modelos econômicos, antiguidade, pré-história, feudalismo, mercantilismo, iluminismo e outros, o Brasil ainda estava sendo 'descoberto' em 1500, com a chegada dos colonizadores portugueses. Então, um dos eixos da publicação é entender como ocorreu a formação histórica do direito do trabalho dentro do modelo escravista que estava sendo implantado no país. Isso fez com que, hoje, ainda tenhamos heranças escravistas com a jornada de 44 horas semanais e com a relação entre empregado e empregador", descreve, utilizando o termo "escravidão contemporânea".
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Richard também destaca como as atuais condições de trabalho podem ser mais precárias quando comparadas, por exemplo, às dos operários das manufaturas pré-industriais do século XIX. "Naquele tempo, era possível viver uma semana inteira com o salário de quatro dias de trabalho. Hoje, muitos brasileiros trabalham seis dias por semana e ainda não conseguem garantir o básico para sobreviver", afirma, citando o alto custo da cesta básica no Brasil e a desproporção em relação ao valor do salário mínimo.
"Sendo as maiores características do trabalhador brasileiro a fome e o cansaço, o que deve ser feito é aumentar o salário mínimo de maneira real, para que ele consiga comprar, pelo menos, o mínimo necessário para sobreviver, não passar fome; e uma redução da jornada de trabalho para que tenha condições mínimas e dignidade junto à sua família, tempo para saúde, lazer e para as tarefas domésticas."
Descanso
Além de abordar as heranças históricas, o livro explora a relação entre jornadas exaustivas e problemas de saúde. Para Richard, o descanso adequado é essencial para reduzir acidentes de trabalho e melhorar a qualidade de vida dos funcionários. "Trabalhadores exaustos estão mais propensos a acidentes, o que gera custos tanto para as empresas quanto para o sistema de saúde pública. Portanto, quando você dá ao trabalhador descanso, isso faz com que sua empresa não precise pagar indenizações, devido à redução dos casos, e evita gastos para o Instituto Nacional do Seguro Social."
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Com mais tempo para descansar, também é possível pensar e investir mais em formação acadêmica e qualificação profissional. "Você vai permitir que as pessoas busquem mais educação e profissionalização, o que vai incrementar muito a sua empresa. Além disso, quando cresce a satisfação do empregado e a possibilidade de ele passar mais tempo com a sua família, a produtividade aumenta. Você também permite que esse trabalhador se dedique à estrutura familiar, favorável ao desenvolvimento social e moral, inclusive, das novas gerações. Isso tudo impacta positivamente na economia, porque são pessoas que vão querer trabalhar, pessoas menos propensas ao crime e que não vão trazer gastos aos cofres públicos", argumenta.
Impacto econômico
Apesar da instabilidade econômica, foi registrado crescimento do país nos últimos anos, sendo a redução da jornada de trabalho uma política que geraria de empregos com baixo risco monetário. "No Brasil, o custo da mão de obra é muito baixo. Então, quando você reduz a jornada de trabalho, você aumenta um pouco o custo da mão de obra, dando aos trabalhadores mais condições para gastar dinheiro. Isso movimenta a economia. A redução da jornada, especialmente para 40 horas semanais, pode fortalecer o mercado interno, porque consumidores vão ter mais disposição e mais recursos para consumir."
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Ainda sob a ótica econômica, estudos trazidos no livro demonstram que, na prática, a medida representaria um aumento de 9,09% na carga horária e apenas 1,99% nos custos de produção, o que poderia ser compensado com o aumento da produtividade. "Empregados mais descansados produzem mais, e a transição permitiria, a longo prazo, uma redistribuição de oportunidades e a democratização do mercado de trabalho. Nós temos uma voz tecnológica tão grande que permite às pessoas trabalharem menos dias na semana e produzirem o mesmo tanto. E se você for um pequeno comércio, é possível distribuir aquelas pessoas que trabalham ali para que, no dia menos movimentado, apenas um trabalhe e o outro folgue", exemplifica.
Propósito
Richard escolheu a graduação em direito visando melhores condições para cuidar dos cinco irmãos mais novos, enquanto a mãe enfrenta problemas de alcoolismo. Ele conta que ingressou na UnB em 2017 e que era para ter se formado em 2023, mas teve de interromper temporariamente a vida acadêmica durante a pandemia para se dedicar exclusivamente à família. Segundo ele, só foi possível retomar os estudos quando a calamidade pública foi controlada e as aulas voltaram a ser ministradas presencialmente.
Apesar dos desafios, ele se diz motivado para defender os direitos humanos, na esperança de um mundo mais justo e igualitário. "No final da graduação, eu queria fazer algo que trouxesse algum benefício social, algo de útil. Então, de certa forma, eu quis trazer um retorno para a sociedade, que é justamente um pilar da universidade federal: devolver para a sociedade o investimento que está sendo feito em você com o dinheiro público", diz Richard.
Na reta final do TCC, o formando está focado na importância da limitação da jornada para que o trabalho cumpra sua função social de desenvolver o ser humano, a sociedade e a economia. O projeto será apresentado em fevereiro e deve se tornar, posteriormente, mais uma publicação literária do autor. Ele também pretende lançar mais uma edição do livro sobre a redução da escala 6x1, voltada aos aspectos econômicos da medida no país. Depois de se formar, o sonho de Richard é lecionar na universidade. Seus planos também incluem advogar para custear um cursinho, visando a aprovação no concurso da Defensoria Pública.