"Eu costumo dizer que nasci professora, porque não consigo me ver, mesmo na infância, sem uma vinculação com espaço escolar." É essa paixão que emana até hoje de Janaína Almeida, 48 anos — mais da metade dedicados à carreira de docente e, na maior parte desse tempo, à escola pública, onde também estudou e se formou.
Jana, como é conhecida e celebrada entre colegas de profissão e ex-alunos, vê na educação um universo mágico de possibilidades. Brasiliense, nascida e criada no Guará, ela brincava de escolinha desde que se entende por gente. Ao ingressar na escola perto de casa, aos 4 anos, o desejo de se tornar professora só aumentou. Saiu do ensino médio já formada como normalista e apta, portanto, a lecionar, em 1993.
"Minha normalista linda / Ainda sou estudante / Da vida que eu quero dar", eram os versos de Belchior que a mãe, Nilce de Almeida Sérgio, mineira, repetia sem se cansar, tamanho era o orgulho que sentia da filha por ter concluído a Escola Normal. "Foi uma fase muito feliz da minha história, da minha formação, porque eu acho que lá tive, de fato, grandes mestres, que me deram um alicerce", avalia a professora, que completou a formação com o curso de ciências sociais na Upis e de pedagogia na Universidade de Brasília (UnB).
Após a formatura, Jana ainda encararia um ano de buscas pelo primeiro emprego e quase desistiu. Em 1994, surgiu a primeira proposta de trabalho, em escola particular, e o sonho começou a ganhar contornos mais claros. A aprovação no concurso para a Secretaria de Educação veio um ano mais tarde e, em seguida, mais um longo período de espera.
Foram chamados os 55 primeiros colocados nas convocações iniciais e Jana havia ficado com a 59ª colocação. Demoraram mais dois anos para que a tão aguardada chamada saísse publicada no Correio Braziliense, em 1997. Quem avisou foi uma vizinha, que gritou da janela: "Janaína, tô vendo seu nome no jornal!". O susto deu lugar à alegria de ver que se tratava da aprovação, mesmo em um momento tão delicado: ela havia acabado de perder a mãe.
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"Esse momento foi uma virada de chave na minha vida, porque eu estava de luto pela morte da minha mãe e esse era um sonho que ela sempre teve, de me ver professora da rede pública. Ela era servidora do GDF também e sabia o peso de trabalhar no serviço público", observa. Nilce era técnica de enfermagem e trabalhava nas alas pediátricas do Hospital Universitário de Brasília (HUB) e do Hospital Regional da Asa Norte (Hran).
Completando o ciclo de mudanças, Jana comprou o primeiro carro e engravidou da primogênita, Sophia de Berdinne Almeida Sérgio, hoje com 27 anos. Mais tarde, nasceu João Vítor de Berdinne Almeida, hoje com 19. Sem a mãe, a professora se mudou para a casa dos avós, no Guará 2, e de lá fazia o percurso até a Escola Sargento Lima, da Marinha, onde foi alocada, na região administrativa de Santa Maria.
Para chegar à instituição, às margens da BR-040, pegava três conduções. Antes das 7h estava por lá para recepcionar os alunos. À noite, seguia para a faculdade, onde cursava ciências sociais. "Foi essa a rotina, e grávida, com barrigão. Depois quando ela nasceu, da mesma forma, só que havia naquele momento a possibilidade de ficar próximo de casa para amamentar. Então, fiquei um ano dando aula na escola em que eu estudei e que era perto da minha casa, a Escola Classe 2."
Transformações
Em 1999, Jana orgulha-se de ter participado da fundação da Regional de Ensino do Paranoá, implementando o plano de trabalho das escolas e, aos 22 anos, encarando a missão de substituir o chefe da Coordenação Pedagógica da Regional de Ensino. Nesse mesmo período, ela participou da construção do primeiro referencial curricular de educação infantil do Ministério da Educação.
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Já em 2000, Jana voltou para o Guará, para lecionar no CEF 5. Foi ali que, antes de retomar a trajetória na gestão, ela lecionou por dois anos seguidos numa turma que deixou marcas que persistem até hoje. Eram alunos da então 3ª série. Quando o ano terminou, os pais fizeram um abaixo-assinado pedindo que Jana continuasse com os meninos, e o pedido foi atendido.
"Era uma turma especial, porque tinha uma diversidade muito grande, mas a gente conseguiu avançar muito nos conteúdos", alegra-se. "Hoje, eles são meus amigos. Tem um grupo chamado 'Tia Jana' no WhatsApp. A gente se encontra e eu sei da vida de todos eles. Quem virou médico, quem virou professora, quem se casou. Eu vou ao casamento deles, conheço os pais…", relata.
Excelência como meta
O próximo período marcante na carreira foi na direção da Escola Classe 5 do Guará. Por 10 anos, Jana ficou à frente da gestão da escola, que alcançou no período o primeiro lugar no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) no Guará e o quinto lugar entre as escolas de ensino fundamental no Distrito Federal.
"A escola foi apontada à época como referência de ensino pela própria Secretaria de Educação. Nós ganhamos vários prêmios de boas práticas de gestão, prêmios Professor Transformador, e o Ideb vinha, a cada dois anos, para coroar essa gestão. Demos um salto qualitativo muito grande, não só no aspecto da formação dos estudantes na área educacional, mas também de uma formação cidadã", orgulha-se. Em 2015, ela recebeu o prêmio Boas Práticas de Gestão.
Entre as práticas inovadoras que alçaram a escola ao grau de excelência, estavam as práticas integrativas, além de atividades no contraturno, como capoeira, futsal, karatê, balé e inglês. As histórias sobre a escola circulavam pela secretaria e havia professor que chegava com receio da carga de trabalho. Jana não desmentia, mas deixava o incentivo: "Se você quiser fazer parte de uma história de sucesso, o caminho é esse: é a formação, é muito trabalho, é projeto, e focar no estudante não só como uma matrícula, mas como ser individual".
Jana fazia questão de preencher, um a um, os mais de 500 relatórios de desempenho após os conselhos de classe. Dessa forma, mantinha-se atualizada sobre a situação de todos e também acompanhava a performance dos professores. Um dos episódios marcantes foi quando um pai, que morava nos Estados Unidos, entrou em contato com a escola para saber detalhes sobre a trajetória escolar da filha, pois não entendia o motivo de a mãe insistir em manter a menina em escola pública.
"Eu me apresentei, disse que era diretora e confirmei (na secretaria) que ele era realmente pai da criança, e informei como estava o desenvolvimento da filha dele. Ele ficou surpreso e falou: 'Olha, professora, nem aqui nos Estados Unidos, se eu ligar para uma escola, uma diretora vai saber falar da minha filha tão bem quanto você está falando dela'. Isso foi muito gratificante, porque mostrou que a gente estava no caminho certo."
Ressignificação
Em 2019, foi a hora de Jana ser convidada para compor a gestão central da Secretaria de Educação, como secretária-executiva pedagógica do então chefe da pasta, Rafael Parente. Passou ainda pela Regional de Taguatinga, como assessora pedagógica, e pelo gabinete do distrital Professor Israel Batista (PSB), onde atuou como assessora parlamentar de Educação. Foi Conselheira do Conselho dos Direitos da Mulher, membro do Fórum de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e de Proteção ao Trabalhador Adolescente, e integrou o Observatório da Educação Básica da UnB. Ela descreve a nova fase como um período de desafios, em que o trabalho, antes restrito a um grupo pequeno de estudantes, ganhou escala.
"Tentei levar um pouco dessa minha experiência de professora, de chão da escola, para a gestão central", observa, completando que promovia caravanas, uma vez por semana, até as escolas da rede para entender a realidade de cada uma e os problemas que precisavam ser enfrentados: de cadeira quebrada a refeitório inadequado, nada passava despercebido. "Tudo o que o aluno de uma escola pública quer é dignidade, respeito", reforça Jana. "Sempre me preocupei muito em passar a ideia de que a escola precisa ser um ambiente acolhedor, chegar e abraçar o estudante."
E é por isso que ela lutou durante toda a carreira na educação. A própria trajetória escolar foi atingida pelo racismo e as marcas das ofensas e da violência que sofreu seguem com ela até hoje. "Embora a escola fosse esse lugar tão maravilhoso para mim, no 2º ano (do ensino fundamental) eu sofri racismo, sem saber que era racismo", afirma Jana. "A professora não deixava os estudantes se sentarem ao meu lado, falava que eu fedia a macaco. Uma vez, eu fiz xixi na sala de aula porque ela não me deixou ir ao banheiro. Ela e os alunos zombaram de mim. Até hoje, eu me lembro o nome e o rosto dela, porque o racismo não passa. A gente vai morrer com as sequelas."
De uma criança que aos 4 anos adorava a escola, Jana se transformou em uma aluna de 8 anos que chorava todos os dias para não precisar ir à aula. Uma tia conta que ela se agarrava às grades das casas pelo caminho. "Eu ficava pensando e falava: 'Gente, mas o que será que eu fiz para ela não gostar de mim?"
As feridas cicatrizaram e, assim que teve a oportunidade, pavimentou o caminho para que milhares de estudantes não sofressem o mesmo — de forma indireta, com as formações, palestras e debates; e também forma direta, defendendo-os de qualquer forma de discriminação dentro da escola.
O momento de lavar a alma, como ela define, foi a construção do projeto de educação antirracista Taguatinga Plural, quando trabalhou naquela regional de ensino. "Quando decidi que queria ser professora, o meu primeiro ponto era não ser uma professora como aquela e não permitir que ninguém ao meu redor fosse essa pessoa racista", conta Jana.
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No âmbito do projeto, foram traçadas uma série de atividades para aumentar o repertório de professores e de estudantes sobre cultura africana. "Quando começamos a colher os frutos desse trabalho eu me senti de alma lavada, pois já cheguei a conversar com alguns estudantes negros que se sentiam como eu: ao chegar à escola, a vontade era de cavar um buraco e entrar, para ficar invisível. Isso não é justo com nenhum ser humano, independentemente da cor da pele. Estamos na escola para sermos vistos, para vivermos, para nos formarmos. Querer ser invisível na escola é uma dor."
O combate ao racismo era o principal objetivo, mas trouxe junto outros benefícios: redução da evasão escolar, alfabetização mais eficaz e combate a outros preconceitos, como gordofobia, lgbtfobia e preconceito econômico.
Luta por direitos
Em paralelo, Jana sempre participou das reivindicações da categoria por melhorias nas condições de trabalho. Seja na luta pela jornada ampliada, sejam reajustes salariais e direito a licenças para capacitação, seja na pressão pela regularização dos pagamento de verbas do Programa de Descentralização Administrativa e Financeira (Pdaf). "Se os professores hoje têm uma situação um pouco melhor, é porque lá atrás e antes de mim já tiveram professores que lutaram e que deram o sangue para a gente chegar à posição em que estamos hoje."
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O encerramento da carreira na Secretaria de Educação veio de forma abrupta. Em setembro do ano passado, Jana foi aposentada por invalidez, após o diagnóstico de esclerose múltipla. A frustração por ter encerrado a passagem pelo funcionalismo público demorou a ser superada. "Passei um ano sabático, bem fechada e reclusa, para cuidar da saúde. Há cerca de um mês, recebi o laudo de visão monocular — perdi a visão do olho direito. Isso prova, mais do que nunca, que eu precisava mesmo me aposentar. Mas acredito que um professor, mesmo aposentado, não deixa de ser professor", atesta.
Com firmeza e determinação expressos no olhar e na fala apaixonada, Jana reforça seu compromisso com a educação e convoca todos a assumirem esse lugar de protagonismo com o bem social mais precioso que há. "Eu digo que eu nasci professora e vou morrer professora porque a educação não acontece só dentro da escola. Acontece em todos os processos da vida. Mesmo não sendo professores, que as pessoas se coloquem neste lugar. Precisamos contar com todos os recursos possíveis para fazer a educação acontecer."
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