Eu, Estudante

NOSSOS MESTRES

História e cultura afro-brasileira: professor do DF se destaca

Professor de Taguatinga perpetua o ensino da história e cultura afro-brasileira em projetos escolares e ajuda na formação de profissionais

O professor André Lúcio Bento, 49 anos, mistura em sua trajetória de mais de 30 anos no ensino público o resgate da ancestralidade, a dedicação e a luta antirracista. Formado em letras pela Universidade de Brasília (UnB), onde também cursou o mestrado e o doutorado na área de linguística, é filho de pioneiros e nasceu em Taguatinga. Hoje, coordena um projeto com foco no ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas da regional de ensino da cidade, para atender à legislação federal e mudar a realidade de milhares de estudantes.

Filho do marceneiro Pedro Bento e da dona de casa Léa Ângela Batista Bento, vem de uma família de seis irmãos. Ele alagoano e ela carioca, se conheceram na recém-inaugurada Brasília. Pedro chegou ainda para a construção da nova capital. No dia em que o filho anunciou que tinha sido aprovado no vestibular para a federal, fez uma revelação emocionante: “As portas de madeira daqueles anfiteatros fui eu que ajudei a colocar”, referindo-se à construção do Instituto Central de Ciências (ICC), também conhecido como Minhocão, no câmpus da Asa Norte da UnB. 
Fotos: Arquivo pessoal - Biblioteca em sua homenagem, em Ceilândia
“Eles sempre apostaram muito na escola, mesmo nunca tendo estudado formalmente. Jamais faltou material, uniforme, nem nada do que a escola pedia lá em casa”, conta, orgulhoso, o professor. Por ter estudado sempre em escolas públicas da periferia — morou também em Ceilândia e em Brazlândia — percebeu logo cedo o potencial desse lugar de formação. “O fato de eu ter vivido uma infância muito pobre foi suavizado porque eu tinha uma família que me amava muito e uma escola. Isso me fez entender que aquela situação socioeconômica só ia mudar por meio da educação. Tudo o que eu penso e sou hoje eu aprendi na escola, e na escola pública”, completa.

Ele também se orgulha de ter no currículo apenas um emprego: o de professor da Secretaria de Educação do DF. André é mais um docente formado na antiga Escola Normal, que preparava estudantes ainda no ensino médio para lecionar. Apesar de o início oficial nas salas de aula ter sido aos 18 anos, em uma escola na zona rural de Brazlândia, desde os 14 o ambiente de ensino lhe era familiar, graças às características do método adotado para ensinar os normalistas, com estágios para observação. De lá para cá, são mais de 30 anos dedicados à carreira. 

A estreia se deu numa turma do primeiro ciclo do ensino fundamental. Além da distância, havia um desafio a mais: tratavase de uma turma multisseriada. Significa dizer que numa mesma sala havia alunos de 2ª a 4ª séries juntos — o mais velho tinha 17 anos. “Foi um desafio muito grande (hoje, inclusive, é uma coisa inimaginável)”, relembra. “Mas eu sempre tomei os desafios como algo que me motivasse. Nunca pensei em desistir. Sempre achei que minha presença ali era importante para aquelas crianças, para a família delas. Então, fiz festa junina, promovia jogos com eles, tudo o que uma escola tem de ter. Foi um início muito diferente e inusitado.” 

Conhecimento 

Arquivo pessoal - Contação de histórias para crianças no CCBB
Hoje, o professor atua na Regional de Ensino de Taguatinga, onde é coordenador do projeto Taguatinga Plural, preparando professores para atender às exigências da Lei nº 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Este ano, 30 escolas participaram. Cada uma recebe apoio financeiro para a compra do material pedagógico, formação e orientação pedagógica. 
“Agora, nós estamos aprendendo a lidar com essas temáticas sem ser de forma estereotipada, equivocada”, celebra. A tarefa de André Lúcio é mostrar o papel dos povos africano e indígena na formação da sociedade brasileira. “Nem tudo o que vivemos e fazemos é herança portuguesa”, destaca. “A própria escravização e o extermínio de povos indígenas leva ao apagamento da história que esse projeto busca resgatar.” 

O objetivo final é promover a consciência social dos estudantes de maneira permanente, e não apenas em datas comemorativas. “Queremos que os estudantes gostem de português e de matemática; que se formem médicos e engenheiros; mas queremos médicos e engenheiros que não sejam racistas”, exemplifica. Para isso, o projeto promove também rodas de conversa e palestras com pessoas que trazem as tradições e memórias invisibilizadas com frequência no país. Escritores indígenas, caciques e uma professora de teatro de Moçambique estão entre os convidados das últimas edições. 

Em três décadas de trabalho na rede pública de ensino, o professor André Lúcio vê avanços em direção a uma educação menos racista, já que muitas escolas se abrem para um trabalho transversal, que se dá o ano inteiro. Para ele, o momento é de transição, para alunos e para professores também, e esse processo precisa ser respeitado. 
“Eu tenho visto uma diferença na paisagem étnica das escolas, e isso é importante porque leva todo mundo a se respeitar. Não tem cabelo ruim, nem cabelo bom: tem cabelo liso, e tem cabelo crespo. E pronto.” 

Ancestralidade 

Arquivo pessoal - Em passeio com alunos do Caic de Brazlândia
Quando o tema é ancestralidade, o professor explica que levou anos até se apropriar da consciência da própria origem. “Como fui um filho muito querido, não tinha sequer consciência da pobreza em que eu vivia. Quando você é amado demais, na escola e em casa, parece que o amor mitiga um pouco”, declara. “Mas você vai crescendo e percebe que muito do que estudou e viu nos filmes eram coisas que tentavam apagar essa ancestralidade.” 
Arquivo Pessoal - Com a professora da 4ª série, em Valparaíso
Na escola, o que ele e milhares de crianças e jovens aprenderam foi o que aconteceu com a população negra no Brasil. “Eu aprendi que os negros eram escravizados, porque assim estava escrito nos meus livros de história”, relata. No cinema e na televisão, por sua vez, as referências eram de violência e subalternidade: o estuprador, o criminoso, a empregada doméstica. 
Arquivo Pessoal - Cerimônia de formatura na Escola Normal
“Isso vai nos distanciando da nossa ancestralidade. Então, eu fui aprendendo o que significa ancestralidade: o que você foi, o que você é, e o que você vai ser. Também foi um aprendizado com o tempo, não vem no automático.” André tomou consciência de que a história do povo negro brasileiro começou muito antes de serem trazidos escravizados para o Brasil. A ancestralidade é uma aprendizagem, atesta o professor, e isso significa que o saber ancestral tem impacto na vida social e na vida política. 

Hoje, ele é especialista em cultura afro-brasileira e africana e tem um projeto pioneiro de catalogação de baobás em Brasília, árvore com forte simbolismo para as culturas tradicionais africanas, considerada sagrada para algumas religiões. Em 2019, apresentou o projeto na abertura do Festival de Cultura do Brasil em Viena, na Áustria. 

Cotas 

Arquivo Pessoal - Em outubro, no Festival Taguatinga Plural
Defensor das cotas, o professor relembra o passado de exclusão que até hoje reverbera em todas as esferas. “A escola no Brasil se instaura como uma cota de 100% para meninos brancos. Só depois as meninas puderam estudar, mas apenas em alguns cursos, relacionados ao cuidar”, diz. “Então, hoje, a cota é uma medida de política pública que é reparadora. Esse estado que no passado excluiu agora precisa incluir, e leva tempo.” 
Mais indícios de avanço foi o fato de este ano ter sido celebrado o primeiro Dia da Consciência Negra como feriado nacional e a redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) trazer como tema Desafios para a valorização da herança africana no Brasil. “Outra coisa inimaginável no Brasil há 10 anos seria um evento pedagógico pautando toda a discussão: os jornais, as televisões, os sites. Todo mundo discutindo e professores sendo convidados para falar sobre possibilidades de abordagem”, enaltece André Bento, ressaltando a importância de tomar os lares e romper os muros da escola com essa discussão essencial.

Para que esse cenário se perpetue por gerações, ele faz a sua parte também na academia. É autor de livros sobre educação e história afro-brasileira e sobre formação continuada de professores. Já ocupou o cargo de subsecretário de Formação Continuada dos Profissionais da Educação e de conselheiro de Educação do Distrito Federal. Atualmente, é membro suplente do Comitê Nacional de Educação e Cultura em Direitos Humanos, vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. 

Para ler

Arquivo pessoal - .
Tâmara e Tamarindo — Na terra dascoisas e daspessoas doces
Autor: André Lúcio Bento
Ilustrações: Bruna Hermínio
Editora Imeph 48 páginas
Neste livro, duas frutasafricanas (tâmarae tamarindo) sãotranformadas em doispersonagens. Comprotagonistas negros,a obra trata dasmisturas da vida e dadiversidade.
“Sem nenhum exagero, a educação escolar me formou o que eu sou, em quase a minha totalidade. Eu tenho em relação à escola um sentimento importante, mas também tenho muita racionalidade. Eu tenho convicção de que a educação melhora as pessoas, muda as pessoas para melhor. Ninguém passa por uma escola e sai como entrou. É um lugar importante para um país que tem uma agenda econômica e social a cumprir.”