"Poucas certezas podemos ter na vida. Uma delas, para mim, é a de que ser professor é uma escolha consciente das responsabilidades profissionais e, como tal, poder tomar decisões convicta de que promovemos experiências significativas que substanciarão atitudes transformadoras na construção de uma sociedade mais justa e um mundo mais humanizado. Eu, professor, felicito os professores que, como eu, buscam constantemente aperfeiçoamentos, valorizam a profissão e vivem a educação."
Foi com essas frases que, há cinco anos, a professora Júlia Maria Passarinho deixou uma homenagem a todos os seus colegas em artigo publicado no Correio no Dia do Professor, celebrado todo 15 de outubro. Durante toda a carreira como educadora ela viveu e propagou essa verdade e, hoje, afirma que não mudaria uma vírgula do texto, assinando embaixo, mais uma vez, das palavras escritas com emoção.
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A vivência criativa e a liberdade guiaram a trajetória de Júlia Passarinho desde as primeiras experiências como professora. A vontade de ser professora nasceu aos 7 anos de idade e com uma ambição ainda maior: ela queria ter a própria escola. Já é famosa pelos corredores do Indi, a escola que fundou em Brasília e da qual é diretora, a história de que ela começou a dar aulas para as galinhas no quintal de casa. "Eu dava aula para as galinhas, e as galinhas ficavam quietas! Minha mãe dizia que eu as hipnotizava. Eu ficava no quintal de casa e escrevia na areia, dando aulas para elas", diverte-se ao relembrar.
Carioca, Júlia nasceu em 1952, na cidade de Resende, distante 160km da capital. Mas já aos 3 anos de idade mudou-se para Belém, para onde o pai, então major do Exército, havia sido transferido para o comando militar da Amazônia. Foi ele, instrutor e professor de inglês, um dos responsáveis por inspirar Júlia a ensinar. A correção das provas e os recados escritos para os alunos com o objetivo de incentivá-los a fascinavam. Mais tarde, Jarbas Passarinho se tornaria governador do estado, senador da República e ocuparia até mesmo o cargo de ministro da Educação, entre 1969 e 1974.
"Meu pai fazia assembleias, a gente conversava, discutia as coisas. Então, com 10 anos, para mim, o normal era ouvir as pessoas e, mesmo que fossem contrárias, ter a capacidade de escutar com respeito e tentar agregar as opiniões diversas em prol de alguma coisa maior", afirma a professora. Isso também significava certa rebeldia para os padrões da época. Júlia conta que sempre estava à frente de manifestações e de movimentos que acreditava serem importantes, tanto no campo dos direitos dos docentes quanto dos direitos humanos.
Solidariedade
A família Passarinho se mudou para Belém com Júlia e o irmão mais velho dela. Os outros três filhos nasceram já na capital paraense. A história do nascimento do primogênito inspiraria, mais tarde, a matriarca Ruth a criar um projeto social que até hoje a família mantém em Brasília.
Dona Ruth contraiu tuberculose quando estava grávida e fez uma promessa pela cura dela e pela saúde do filho. Se ambos se salvassem, ela se dedicaria a combater a doença. Com as preces atendidas, ela viu a oportunidade, anos mais tarde, na chegada a Brasília, de cumprir o voto. "Ela descobriu que o Núcleo Bandeirante era um foco de tuberculose e que a doença dizimava famílias inteiras. Muitas crianças adoeciam e morriam pelo contágio, pois não tinham para onde ir e se isolar. Aí, ela criou a Casa do Pequeno Polegar, para atender filhos saudáveis de pais com tuberculose", resume Júlia.
A casa começou, há 57 anos, com um convênio com o Governo do Distrito Federal. Inicialmente funcionou em regime de internato. Os filhos assumiram a gestão e renovaram a parceria, enriquecendo com as atualizações das ciências e a legislação em vigor. Hoje, a instituição atende a 270 crianças em situação de vulnerabilidade do Mangueiral, Itapoã, Paranoá e São Sebastião, ofertando educação infantil com a mesma metodologia aplicada no Indi.
"Eu continuo (na Casa do Pequeno Polegar) porque, para mim, é uma herança de amor. Não tem jeito. Enquanto eu viver eu trabalho aqui (no Indi) — porque espero parar só depois que eu me for — e lá também, que é a obra que a gente preserva, de levar para as crianças desprivilegiadas mais carinho, mais cuidado, mais atenção, alegria e prazer de aprender", emociona-se Júlia, que é vice-presidente da casa.
Pioneirismo
Júlia completou toda a trajetória escolar em instituições públicas de ensino, e alimentava no dia a dia a criatividade. Na chegada a Brasília, em meados dos anos 1960, ela estava na adolescência e foi por aqui que se formou professora, pela extinta Escola Normal. O ensino de altíssimo padrão, reconhecido à época como referência na América Latina, representou uma importante base da carreira, mas também escancarou as amarras que a metodologia mais tradicional impunha.
A essa altura, Júlia havia cuidado das crianças da rua, lecionado em aulas particulares e em pouco tempo daria início ao sonho de infância de abrir a própria instituição de ensino. A estrutura ainda improvisada ficava em uma casa alugada na QI 2 do Lago Norte. Era apenas uma turma de alunos na escola da Tia Bibia, apelido carinhoso e divertido.
Com o passar do tempo e expansão das turmas, alfabetizar as crianças com os materiais de apoio pedagógico disponíveis à época começou a se mostrar mais que um desafio: uma impossibilidade. O hermetismo da educação tradicional se opunha radicalmente ao que Júlia acreditava ser o caminho da educação. O questionamento e a liberdade criativa eram os elementos que ela procurava e que conseguiu encontrar na metodologia de uma professora do Rio de Janeiro, Maria de Lourdes Pereira da Silva.
A educadora, que morreu com quase 100 anos, criou uma metodologia de ensino batizada de auto expressão. "Quando eu conheci a apostila da Lourdes eu fui ao Rio de Janeiro atrás dela. Pensei: 'Tem tudo a ver com o que eu acredito'. Não tinha uma cartilha, como a gente não tem até hoje; era todo um vocabulário de vida, que trazia a realidade dos alunos e era construído com eles", exemplifica Júlia.
A metodologia de Dona Lourdes foi influenciada pelo trabalho de contemporâneos, como o educador baiano Anísio Teixeira e a também educadora Heloísa Marinho, paulista com especialização em filosofia e psicologia que marcou a educação brasileira na segunda metade do século 20. “Ela sempre trouxe essa coisa da experimentação, o enfoque no fazer, no construir”, resume Júlia.
Espaço de expressão
A partir da proposta de alfabetização da metodologia de auto expressão, Júlia desenvolveu o próprio método de ensino, a pedagogia da interação expressiva, que aplica no Colégio Indi, o Indi Bibia. Localizada atualmente uma quadra à frente do local de inauguração, na QI 3 do Lago Norte, a escola completa 47 anos em 2024.
No método, há cinco pilares essenciais: emoção, ludicidade, ciência, social e o movimento. Os espaços abertos, que propiciam a interação com a natureza, e a liberdade de movimentação são pontos essenciais da proposta. Mesmo na segunda fase do ensino fundamental os alunos vivenciam esses pilares e, em vez de terem uma sala de aula para a turma, transitam pelas salas ambientes de cada uma das ciências. Não há sinal entre as aulas, eles mesmos controlam o tempo e quando devem trocar de ambiente. Há três anos, o Indi abriu também turmas de ensino médio.
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Os maiores desafios durante todo esse período, segundo Júlia, foram garantir a formação apropriada de professores para o método e desmistificar a visão de que a escola era permissiva demais, uma vez que não se encaixa nos padrões do ensino tradicional.
"É preciso ter a consciência de que o professor não é onisciente nem onipotente. Ele precisa ser um parceiro, um estimulador, uma referência para o aluno", detalha a professora. "Hoje, a seleção que nós fazemos é muito mais para o lado humano, pessoas que têm uma cabeça pronta para se abrir a outras possibilidades, para aprender coisas diferentes e se disponibilizar a olhar o aluno como esse sujeito que já tem a sua história iniciada e que também pode te trazer muita coisa."
Para transpor o segundo desafio e mostrar que a metodologia funcionava, os principais aliados foram os pais que abraçaram e confiaram na proposta da escola. “Eu sou muito grata a essas primeiras gerações, porque eles acreditaram na gente, apostaram comigo”, lembra Júlia. Os quatro filhos dela, assim como netos e alguns dos sobrinhos netos, estudaram e estudam no Indi. A caçula, Ruth, divide a gestão da escola com a mãe e é hoje coordenadora do ensino médio e vice-diretora da escola, após ter começado como auxiliar em sala de aula. Outro filho, Roberto, trabalha na parte administrativa e também começou como auxiliar de secretaria.
Literatura
Um dos símbolos do Indi, o Fest Livro completou 40 anos e as comemorações tomaram boa parte dos meses de setembro e outubro. A festa, inspirada inicialmente também na metodologia da auto expressão de Dona Lourdes, ganhou cara própria na escola pioneira no Lago Norte.
Uma enorme cobra banguela feita de material reciclável recebe os alunos logo na entrada, com corpo em formato de túnel onde eles podem se aventurar e soltar a imaginação. É uma homenagem ao escritor Guido Heleno, o primeiro a se apresentar no festival, que ao longo dessas quatro décadas recebeu também nomes como Ziraldo e Sylvia Orthof. O eterno menino maluquinho, inclusive, disse que queria ter passado a infância no Indi.
A apresentação deste ano foi do autor e ilustrador Ivan Zigg e recebeu, como sempre, além de alunos, pais e professores, toda a comunidade para celebrar. "O festival é um projeto que culmina com toda uma expressão que permeia o ano inteiro de trabalho e que apresenta, no final, resultados incríveis de valorização da linguagem, da leitura, da cultura", elenca Júlia.
O futuro
De sua nave central, uma sala rodeada por janelas de onde Júlia tem uma visão completa do pátio principal da escola, ela reflete sobre o futuro da educação. "Eu acho que o mundo está desqualificando os valores reais que o processo educacional tem de ter. E o processo educacional é o desenvolvimento humano. Então, se você não tem valores humanos intrínsecos no seu processo, você está fadado a perder toda a essência. Não é mais só a ciência em si, não é aprender por aprender. Você tem que aprender e entender o que você faz com esse conhecimento. Aprender a conviver com as pessoas, a incluir o outro na busca do bem comum", avalia a diretora.
O conceito de inteligência emocional, tão discutido atualmente, sempre foi umas das bases do ensino preconizado pela educadora e, na avaliação dela, será essencial para que a humanidade atravesse esse período desafiador de desenvolvimento tecnológico e exposição a dispositivos eletrônicos sem perder a essência. "Para mim, o objetivo fundamental desse século na educação é a formação humana", finaliza.
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