política de inclusão

Nova legislação visa estimular inserção dos autistas no mercado de trabalho

Especialistas apontam que questões como preconceito, falta de apoio e assistência adequada são algumas das barreiras que contribuem para a baixa empregabilidade de pessoas com o transtorno no país

Raphaela Peixoto
postado em 06/10/2024 06:01 / atualizado em 06/10/2024 08:59
Nas experiências profissionais, Américo Jr., 34, ressalta a importância de apoio e compreensão, principalmente, no início
 -  (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)
Nas experiências profissionais, Américo Jr., 34, ressalta a importância de apoio e compreensão, principalmente, no início - (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)

Publicada no Diário Oficial da União de 4 de outubro, a Lei 14.992/2024 define regras para estimular a contratação, como empregado, aprendiz ou estagiário, de pessoas com TEA. A matéria teve origem no Projeto de Lei (PL) 5.813/2023 e prevê que que a União deverá incorporar ao Sistema Nacional do Emprego (Sine) os dados do Sistema Nacional de Cadastro da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (SisTEA). Além de ações de sensibilização, essa integração visa facilitar a intermediação de oportunidades de trabalho e contratos de aprendizagem, que têm duração de até dois anos.

Em relação aos estágios, foi retirada a obrigatoriedade de agentes de integração entre escolas e empresas darem prioridade ou atenderem os candidatos com TEA de maneira especial, inclusive, na busca por vagas de estágio que se encaixem no perfil deles. Por outro lado, será responsabilidade dos municípios que se unirem ao Sine promover ações voltadas à inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Isso incluirá a realização de feiras de emprego e a sensibilização de empregadores para a contratação dessa parcela.

Américo Júnior, 34 anos, é voluntário na Associação Brasileira de Autismo Comportamento e Intervenção (Abraci). Em seu currículo, tem passagem como professor temporário no Instituto de Brasília (IFB) e no Centro de Educação Profissional Escola Técnica de Ceilândia (CEP ETC), além de ter estagiado no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ele é diagnosticado com transtorno do espectro autista (TEA) nível dois de suporte e avalia que a sociedade ainda não está preparada para a inserção desses profissionais no mercado.

"No que tange ao mercado de trabalho para autistas, falta muita compreensão das pessoas e uma estrutura melhor para que elas possam ser apoiadas e aprender o ofício. Não que nós, com o tempo, não consigamos ter uma desenvoltura suficiente para trabalhar como os outros, mas, principalmente no início, precisamos de apoio e compreensão nas soft skills — conjunto de habilidades ligadas ao comportamento e à interação social —, que é onde eu mais desenvolvia problemas na hora de trabalhar". afirma Américo. 

A inserção de autistas no ambiente corporativo é assegurada também pela Lei 12.764/2012, conhecida como Lei Berenice Piana, que formalizou o reconhecimento dos indivíduos com TEA como pessoas com deficiência (PcD). Essa legislação visa, entre outros aspectos, assegurar que esse grupo tenha acesso a direitos fundamentais, como saúde, educação e oportunidades no mercado de trabalho, atribuindo ao poder público o dever de: fornecer informações sobre o transtorno e suas implicações; promover a formação e capacitação de profissionais que atendem pessoas com autismo; e incentivar a investigação científica, priorizando estudos relacionados ao transtorno. 

Ainda, os direitos de profissionais com TEA são garantidos pela Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência (Lei 8.213/1991), que determina reservas para empregar pessoas com deficiência de acordo com a quantidade de funcionários: de 100 a 200 empregados, a proporção legal é de 2%; de 201 a 500, de 3%; e de 501 a 1.000, de 4%. As empresas com mais de 1.001 funcionários devem reservar 5% das vagas para esse grupo e a contratação de profissionais com TEA é opcional para empresas com menos de 100 funcionários. As multas para organizações que descumprirem a legislação podem chegar a R$ 228 mil.

No Brasil, estima-se que há mais de 2 milhões de pessoas com TEA, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Nesse cenário, pesquisa do IBGE revelou que 85% dos profissionais autistas estão fora do mercado de trabalho. A psicóloga especialista em análise do comportamento aplicada (ABA) Carolina Passos afirma que essas pessoas não só enfrentam desafios para conseguir uma vaga, mas também na manutenção daquele trabalho. Segundo ela, independentemente do grau de instrução e do prejuízo intelectual que profissionais autistas possam ter, a dificuldade é comum para todos. Porém, muitas dessas barreiras poderiam ser solucionadas com uma mudança cultural capaz de provocar maior compreensão da neurodiversidade no país. 

Habilidades

 

O transtorno está dividido em três níveis de suporte, que vão definir o comportamento do profissional no mercado de trabalho, sendo o nível 3 o mais severo. De acordo com o especialista em governança corporativa Roberto Gonzalez, os traços se manifestam de diferentes maneiras e em diferentes graus, e podem representar ganhos às organizações, quando bem direcionados. "É preciso desmistificar uma série de estereótipos quando falamos de contratar uma pessoa autista. O alto escalão da empresa deve se envolver na questão para entender o perfil do profissional e atribuir funções que estejam relacionadas às suas habilidades pessoais e ao seu foco de interesse", afirma.

Valmir de Souza, diretor de operações da Biomob, startup especializada em soluções de acessibilidade, destaca o hiperfoco como principal habilidade de pessoas com o TEA. "Nesse caso, se você der uma atividade que não requer criatividade, mas requer concentração e repetição, ele vai performar super bem", explica. Essa característica faz com que esses profissionais sejam mais detalhistas e analíticos, aspectos cada vez mais valorizadas pelos recrutadores. Além disso, são mais produtivos quando têm uma rotina estabelecida e um bom planejamento.

Carolina também aponta os benefícios da inserção de um autista para o tratamento. "Quando você consegue envolver essa pessoa na comunidade, exercendo o emprego, conseguindo gerenciar a própria vida e, quando a gente fala em gerenciar a própria vida, não significa que precisa ser 100% independente, pois a gente entende que ninguém é 100% independente, mas que a pessoa está num ambiente e que ela tem um suporte necessário para ela viver uma vida com qualidade de vida digna, é dar o mínimo dos direitos básicos."

Inclusão limitada

Filipe Marques
Filipe Marques, 35, diagnosticado com TEA na fase adulta: "Autoconhecimento ajuda na carreira" (foto: Arquivo Pessoal)

Filipe Marques, 35 anos, é servidor público e foi diagnosticado com TEA já adulto, em 2021. "Apesar de eu ter várias dificuldades sociais, vários episódios de estresse e de processamento, eu mesmo consegui disfarçar e ninguém percebia que havia algo diferente, além de mim, porque eu sempre percebi que eu destoava do restante do pessoal", diz Felipe. Ele também afirma que, agora, sabendo de sua condição, tem mais conhecimento de seus direitos e de suas limitações, o que corrobora para o desempenho na carreira.

No entanto, ele relata ter receio de contar sobre sua condição no ambiente de trabalho, pois tem medo de ser subestimado. "Não é que esconda. Se me perguntarem, eu falo. Mas não é algo que eu saio dizendo para todo mundo. Eu desempenho funções de chefia já há um tempo no serviço público e tenho um pouco de receio de que isso possa fazer as pessoas me enxergarem como menos competente", afirma Felipe.

Para o servidor, o mercado de trabalho tem se tornado mais inclusivo, porém, ainda é preciso haver melhorias, sobretudo no que diz respeito a cargos de chefia. "Em muitos lugares falta a inclusão mínima, e nos lugares onde há essa inclusão, falta esse cuidado maior de tentar garantir uma maior acessibilidade, não só para autistas, mas para deficiências como um todo, em postos de maior nível de complexidade, de maiores níveis remuneratórios".

Papel do gestor

A fundadora da Associação Brasileira de Autismo Comportamento e Intervenção (Abraci), Lucinete Ferreira de Andrade frisa que só disponibilizar vagas não é efetivo. Ela afirma que "empresas abrem vagas PcD apenas para cumprir protocolos, mas não têm uma política inclusiva de verdade, apenas contratam e esperam as execuções". Lucinete defende, ainda, que faltam oficinas e cursos preparatórios específicos para o público com autismo. "A falta de preparo na educação inclusiva faz com que esses jovens abandonem a escola ou chegam esgotados emocionalmente para a inserção, o que culmina no abandono da atividade", pondera.

Visando auxiliar profissionais com TEA nas empresas, além de atrair e reter esses talentos, os gestores devem considerar duas condutas: não duvidar da capacidade deles e ser o mais literal possível. "A neurodiversidade traz um comportamento muito mais simplista e prático. Toda informação tem de ser direta e objetiva. Não usar analogias, abreviaturas ou termos muitos técnicos. Quanto mais simples for a comunicação, mais exitosa ela vai ser", explica Valmir de Souza.

Além de entender as características desse indivíduo e fazer uma adequação conforme as competências que ele tem, Valmir frisa a importância da aceitação. "[É essencial] não esperar que o profissional vai reverter um tipo de característica dele com o trabalho, porque não vai", afirma o líder. 

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