Em um mundo dominado por letras e números, ler e escrever é essencial para compreender os diversos enunciados do dia a dia. No Brasil, segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 93% da população é alfabetizada, o que representa um avanço de quase 20% nos últimos 40 anos. Porém, ainda há mais de 11 milhões de pessoas com idade igual ou superior a 15 anos que não sabem ler e escrever um bilhete simples, sendo a maior taxa de analfabetismo entre a terceira idade.
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Tendo em vista esse cenário, o Centro Universitário Uniceplac oferece, desde 2022, aulas gratuitas de alfabetização e letramento para jovens e adultos, de qualquer idade, que tenham interesse em aprender. O Correio acompanhou um dia de atividades do projeto de extensão da faculdade, no Gama, registrando a construção de conhecimentos que não estiveram presentes em grande parte da vida dessas pessoas. Neste semestre, oito alunas do curso de pedagogia participam auxiliando nas aulas.
A professora de pedagogia e coordenadora do projeto Luciana Bonifácio conta que a ideia surgiu como forma de unir uma oportunidade de aprendizado para os funcionários do Uniceplac e para os alunos do curso: "Muitos dos nossos funcionários não tinham sido alfabetizados porque deixaram a cidade onde moravam para vir trabalhar, daí também pensamos na possibilidade de colocar os nossos alunos na prática da educação de jovens e adultos", diz.
As reuniões ocorrem todas as terças-feiras, às 17h, e duram em torno de uma hora e meia, com vagas disponíveis a cada seis meses. No segundo semestre de 2024, foram abertas 20 vagas, sendo que há cinco alunos frequentando as aulas no momento. Para participar, os interessados podem se inscrever por meio das redes sociais do Uniceplac ou comparecer, presencialmente, à faculdade, na brinquedoteca, sala 107 do bloco B, ou ainda fazer a inscrição pelo telefone (61) 98485-7461. Ao final de cada ciclo, os participantes recebem certificados.
Abordagens
No geral, os alunos do projeto de alfabetização são pessoas da comunidade do Gama que moram próximas ao Uniceplac, principalmente, na faixa etária acima de 60 anos. As abordagens são únicas para cada aluno, respeitando seu nível de conhecimento e ritmo de aprendizagem. "Tem alguns alunos que já reconhecem as letras, então a gente trabalha mais individualmente, com o desempenho de cada um", relata a professora Luciana.
Como as aulas ocorrem em uma brinquedoteca, há uma diversidade de materiais que contribuem com a alfabetização dos adultos, como livros, desenhos, lápis e canetas coloridas. A estudante de pedagogia do 5º semestre Endy Sanchainy, 25 anos, explica que os métodos utilizados são dinâmicos, unindo a teoria e as vivências dos alunos.
"A gente utiliza métodos do início da alfabetização, começando pela tradicional pegada no lápis, mas eles trazem uma experiência de vida que é gigantesca. Então, a gente precisa respeitar esse processo. Eles contam que querem ler para os netos e, quando conseguem escrever o nome dos animais, por exemplo, falam 'nossa, eu tenho um gato em casa', ou 'essa planta, samambaia, eu tenho também'. Por isso, a gente tenta linkar (relacionar) o conhecimento com o dia a dia deles para que faça sentido", compartilha.
Direitos
Como conta Endy, o projeto de alfabetização é buscado, especialmente, com o objetivo de realizar atividades simples do cotidiano, como compreender o letreiro de um ônibus ou ler a Bíblia. Para a aluna, a procura é pelo direito básico do acesso à leitura e à escrita, e pela dignidade: "Não há limite de idade, eles só precisam vir e conquistar o lugar deles no mundo".
A alfabetização é um direito fundamental garantido na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que coloca que todos têm direito à instrução gratuita, construindo a personalidade e fortalecendo o respeito pelos direitos e liberdades do cidadão. Apesar disso, essa não é a realidade de muitos brasileiros.
Alzeni de Oliveira, 77 anos, por exemplo, não teve acesso aos estudos na época escolar, pois "onde eu morava, no Nordeste, não tinha aula". Situação similar ocorreu com Maria das Graças da Silva, 73 anos, que não teve oportunidade de estudo porque "casei cedo e tinha que trabalhar, já chegava em casa à noite e não tinha tempo de estudar". Hoje, ambas estão aprendendo a ler e escrever no Uniceplac, resgatando seus direitos.
A aluna do terceiro semestre de pedagogia Milena Bessa, 23 anos, expõe que, além de um direito básico, quando os alunos aprendem essas habilidades, estão desenvolvendo uma nova forma de enxergar o mundo, construindo sua independência. "Eles começam a viver de verdade, porque, quando você depende de alguém para ler uma coisa simples, você não vive, só existe e sobrevive. Então, eu acredito que a maior importância é justamente a pessoa entender o porquê de ela estar aqui, e isso é muito bom", conta. A estudante do 6º semestre Amanda Martins, 20 anos, complementa: "A educação precisa ser inclusiva".
Experiência
Maria das Graças, que está aprendendo a ler e escrever pela primeira vez, relata uma experiência "maravilhosa", vindo para a faculdade todas as terças-feiras com o neto, que estuda no Uniceplac e fez a matrícula dela no projeto. Ela também vê, nas aulas de alfabetização, uma oportunidade de preencher o tempo vago, agora que os filhos estão crescidos, com um conhecimento que sentia muita falta: "Em casa, não fazia nada, e é tão chato não saber ler e escrever, porque você quer fazer as coisas e fica dependendo dos outros, mas, agora, eu sei assinar meu nome muito bem". Maria das Graças considera que as aulas foram "a melhor coisa que me aconteceram" e aconselha que "todos que não sabem ler e escrever venham para cá".
Milena Bessa, que acompanhava Maria das Graças na ocasião em que o Correio esteve presente, conta que a senhora é muito receptiva e que gosta de ensiná-la. "Parece que eu estou ensinando a minha avó, ela é um amor, é extremamente simpática e divertida, leva tudo na tranquilidade. Quando ela vê que errou, faz de novo, repete a letrinha", diz. A estudante de pedagogia ainda percebe que "a gente mais aprende do que ensina".
Alzeni frequenta as aulas de alfabetização desde o primeiro semestre do ano e teve que dar uma pausa durante as férias da faculdade, aguardando ansiosamente pelo retorno: "Eu pensei que as meninas não iriam me chamar mais, não iriam dar mais aula, mas daí elas ligaram dizendo que eu podia vir, e eu fiquei alegre". Já adulta, Alzeni havia tentado estudar em uma instituição de ensino em Santa Maria, onde mora, mas diz que não conseguiu aprender, pois o ensino era "muito bagunçado". Hoje, ela conhece o alfabeto todo e, inclusive, declamou as letras durante a visita do Correio. Alzeni está tão feliz pelo que aprendeu que "queria que as aulas fossem a semana toda".
A estudante do terceiro semestre de pedagogia Ana Carolina Ramos, 36 anos, compartilha que é "muito gratificante" trabalhar com as pessoas que vão às aulas. "Elas são carinhosas e dedicadas, gostam mesmo do que estão fazendo e prestam bastante atenção no que a gente explica, não se importando em fazer de novo ou perguntar".
Transformação
Para a professora Luciana Bonifácio, o projeto de alfabetização de jovens e adultos é transformador e traz um retorno muito positivo, observando a felicidade no olhar de quem aprende a ler e escrever pela primeira vez. "Eles nos agradecem por aprenderem o simples, o básico a que não tiveram acesso antes. Ficam muito felizes de escrever o próprio nome, e isso, para a gente, não tem preço", descreve.
A estudante Ana Carolina percebe que está fazendo a diferença por meio da educação, ampliando não só conhecimentos, mas visões de mundo. "Trazer essa noção de alfabetização para esses senhores e senhoras idosas faz com que se amplie o espaço de conhecimento deles e se abra um mundo novo para cada um. Isso aumenta a autoestima, e eles ficam mais empolgados com a vida, o que é muito importante nessa fase em que estão vivendo", expõe.
*Estagiária sob supervisão de Marina Rodrigues