Professor e treinador de basquete com mais 1,5 mil atletas formados em quase 25 anos de carreira apenas no magistério, Márcio Júnior, 49 anos, ou Márcio Cabecinha, como é conhecido, tornou-se referência no esporte para os estudantes da rede pública de ensino em Taguatinga e levou o nome da cidade e de seus pupilos ao reconhecimento nacional e internacional. O diálogo permanente com os jovens para que enxerguem possibilidades além da realidade em que vivem, muitas vezes limitadas por contextos de vulnerabilidade, são motivo do orgulho que o professor não se cansa de externar.
Márcio começou a trajetória nos esportes seguindo a paixão nacional: o futebol. A altura acima da média, no entanto, chamou a atenção do professor Valtinho, que o convidou para jogar basquete. Ele aceitou o convite para participar de uma das aulas, mas achou que sua praia era mesmo o campo.
Pouco tempo depois, porém, uma exibição dos Harlem Globetrotters mudou essa história. O time mais famoso do mundo, como é conhecido, faz exibições performáticas na quadra, usando até mesmo malabares. “Fui assistir a um filme e fiquei apaixonado”, conta. Decidiu, então, levar o basquete a sério e começou a treinar em 1987 no Centro de Iniciação Desportiva (CID), programa ligado à Secretaria de Educação do DF.
A trajetória que começou ali o levou à prática profissional, que culminou pela passagem em clubes como o Vizinhança e a própria Seleção de Brasília. Também foi essencial para a recuperação emocional após a morte da mãe, Rosa. “Eu perdi minha mãe muito novo, aos 14 anos. Isso foi um baque muito grande na minha vida. Então, eu tive uma infância em que o esporte se tornou minha âncora.”
Virada profissional
Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - Na coluna Nossos mestres, Márcio Júnior conta como o basquete mudou nos últimos anos e a importância de se manter atualizado para garantir uma carreira de sucesso
“Quando eu vi que eu não ia conseguir ser um jogador profissional, porque é um funil bem estreito, decidi fazer educação física e tentar ser professor, ser treinador”, relembra Márcio. Em 2000, ele se formou pela Universidade Católica de Brasília e já saiu empregado, no Centro Educacional Católica. Além de dar aulas para todos os níveis da educação básica, treinava as equipes competitivas da escola. O retorno ao CID, agora como professor, ocorreu em 2007, e representou mais uma fase marcante na carreira de Márcio.
Mineiro de Belo Horizonte, Márcio Júnior veio para Brasília na infância, depois que o pai, Márcio Rocha, passou para o concurso da Secretaria de Educação, para dar aulas de ciências. “Inclusive, ele foi o meu professor (na 8ª série). Foi o pior ano da minha vida”, brinca o filho, e explica o desafio: “Se eu tirasse nota alta, é porque era filho do professor. Se eu tirasse nota baixa, o filho do professor era burro”.
Anos mais tarde, veio do pai o incentivo para que Márcio participasse do concurso público da Secretaria de Educação. “Meu pai foi o meu professor e foi meu anjo, porque eu estava nessa vida de treinador e não queria fazer o concurso da secretaria. E ele disse: ‘Faz o concurso’. A escola pública tinha aquela pecha de ser pior, de ser ruim. Mas ele insistiu tanto que eu fiz o concurso e passei. O meu mundo deu tantas voltas que hoje eu acabei assumindo a vaga no lugar onde comecei”, relata Márcio.
Hoje com 75 anos, o patriarca é aposentado e foi diagnosticado com a doença de Alzheimer. “Cuido dele com todo o carinho, porque ele foi a minha referência de educação, de formador. Tento retribuir isso e sou orgulhoso de ser professor da Secretaria de Educação e de fazer um trabalho diferenciado.”
Agora é o momento de se tornar exemplo para as próximas gerações. Este é primeiro ano em que Miguel, 14 anos, filho de Márcio, joga na equipe treinada pelo pai. “Estou muito feliz e orgulhoso”, celebra.
Espírito de equipe
Arquivo pessoal - Márcio Júnior com a equipe do CID Taguatinga na Copa Goiás 2024
No dia em que foi tomar posse como professor da rede pública, o coordenador da Regional de Ensino de Taguatinga o reconheceu, devido ao trabalho como treinador que desenvolvia na escola particular e no basquete da cidade, e fez o convite para que Márcio assumisse o time do CID de Taguatinga, já que Valtinho, seu ex-professor, havia se aposentado. “Hoje, eu estou no lugar do cara que me trouxe para o basquete”, diz, orgulhoso. “Ele nos falava para não pensar só na bola, que tinha de estudar, e nos falou muito dos Estados Unidos”, relata o professor. À época, o jovem Márcio não entendia muito a mensagem, queria mesmo era jogar. Hoje, depois de ter a oportunidade de conhecer diversos países como treinador, ele se recorda dos primeiros ensinamentos do mestre e os coloca em prática com os atletas.
“Eu já treinei mais de 1,5 mil atletas ao longo desse período, e tenho grandes atletas, que se tornaram profissionais”, destaca Márcio, que não dispensa uma oportunidade de exaltar o CID. “É um programa maravilhoso. Eu viajo o país inteiro, e sei que poucos estados têm um programa tão legal. Ele oferece esporte gratuito e de qualidade para os alunos da rede pública de ensino, com professores altamente qualificados, de diversas modalidades, não só basquete”, explica (leia Para saber mais).
O sucesso do polo de Taguatinga é tão grande que a divulgação já não é mais necessária, as turmas estão lotadas e os alunos vêm até do Entorno. Os treinos abrangem as categorias de sub-10 a sub-17 e os atletas participam de diversas competições, mas o foco são os Jogos Escolares do Distrito Federal, pois as equipes campeãs representam Brasília no Campeonato Brasileiro. Nesses momentos, o apoio das famílias dos atletas se torna essencial, uma vez que precisam ajudar a garantir os recursos para as viagens. O esforço é conjunto para organizar rifas e eventos com o objetivo de arrecadar os recursos necessários.
Investimento
Arquivo pessoal - O filho Miguel, hoje com 14 anos, segue os passos do pai e estreou na equipe do CID
Na avaliação de Márcio, o investimento no basquete precisa melhorar em nível nacional. “Eu vi isso durante a Olimpíada. Vivemos dois opostos no Brasil: a cultura do futebol e a do esporte que ganha. Então, se o Isaquias ganha uma medalha na canoa, beleza. Se o atleta da marcha atlética (Caio Bonfim) aqui de Brasília ganha medalha, aí tem investimento. Se a Rebeca (Andrade) ganha a medalha na ginástica, tem investimento. Mas não pode ser assim. É o contrário: primeiro a gente investe para depois ter resultado.”
A chegada das ligas americanas, como a NBA, à televisão aberta e ao YouTube tem sido um impulso, na visão do professor, para que os jovens valorizem cada vez mais esse esporte, mas é necessário um investimento desde as categorias de base para que eles consigam participar das competições. “Não adianta vivermos de Oscar ou de Santos (jogador do Golden State Warriors), que hoje está na NBA, ou de Caboclo (jogador da Seleção Brasileira). O talento individual nunca vai vencer uma equipe a nível mundial.”
É por esse motivo que Márcio ensina aos atletas muito mais que as técnicas básicas do esporte, mas principalmente a importância da construção de um trabalho coletivo. “Mesmo que a gente tenha alguns atletas que se sobressaiam — que é algo de que a gente precisa, alguns bons pontuadores — é o trabalho de equipe que precisa prevalecer. Por isso minhas equipes são sempre competitivas, porque não interessa se um garoto entra ou outro sai. Eu formo tantos bons atletas que alguns clubes os chamam para jogar e, mesmo assim, a gente continua tendo equipes consistentes, porque elas jogam com essa filosofia”, detalha o treinador.
Fotos: Arquivo pessoal - Medalhas dos jogos mundiais de Roterdan, como técnico do time Forças da Capital
Ser figura masculina de referência para muitos desses atletas também é uma tarefa que Márcio desempenha com cuidado. Dar aulas na rede pública é, como ele define, nadar contra a maré, diante de dificuldades como a falta de material e da realidade dos estudantes, majoritariamente vindos de famílias de baixa renda. Mostrar para eles um propósito de futuro que vai além do esporte é o maior trunfo do trabalho desenvolvido. “A gente não joga só para ganhar, a gente joga para viver, para fazer parte de algo importante, que vai dar um propósito às nossas vidas”, resume.
“Hoje eu coloco que eles podem alcançar uma faculdade, eles podem se tornar profissionais, não só dentro do esportes. Profissionais competentes. E se escolherem o esporte, podem se tornar profissionais, professores, árbitros. Tento colocar na cabeça deles que o mundo não é tão pequeno como a realidade deles. É muito maior”, ressalta.
Márcio reforça a importância de os pais também perceberam o potencial do esporte como transformador na vida das crianças e adolescentes, com impacto na socialização, autonomia e capacidade de lidar com conflitos. “Trata-se de um investimento para a vida, e não apenas uma atividade para tirar as crianças do ócio e das telas.”
Evolução
Arquivo pessoal - Com o ex-jogador da Seleção Brasileira de basquete e amigo Guilherme Giovannoni
Assim como outras carreiras, a do basquete passou por grandes transformações, e o professor Márcio explica que é necessário isso se refletir na formação dos atletas e, consequentemente, na qualificação dos treinadores e profissionais de educação física. “A aula que eu dava 10 anos atrás não é mais a mesma. Não existe mais aquele treinador que põe o apito no pescoço. Hoje a gente usa neurociência, tomada de decisão, velocidade neurocognitiva, elementos da psicologia, do aperfeiçoamento físico”, explica.
“Quando eu comecei a jogar, atuava numa posição de pivô, que é um jogador grande. Hoje eu seria um armador, um cara que é o pequeno do time, que leva a bola”, exemplifica o professor, de 1,98m. E, devido a essas mesmas transformações, ele aposta que, em breve, os Estados Unidos percam a hegemonia no basquete mundial, a começar pelos torneios femininos.
É com essa visão de futuro que Márcio deixa um conselho às próximas gerações de professores: “Para ser professor, você tem de ter dom. É uma carreira não tão valorizada como outras, precisamos trabalhar muito. Nunca pensei em ganhar dinheiro, mas hoje vivo da educação, construí meu patrimônio, viajei o mundo. A educação transforma. Então, quem pensa em ser professor em qualquer área, abrace isso e use o dom que você tem”.
Para saber mais
Os Centros de Iniciação Desportiva (CID) têm como objetivo oferecer aos estudantes da rede pública de ensino do Distrito Federal a prática e o conhecimento técnico e tático de diferentes modalidades esportivas. As aulas são gratuitas, para estudantes de 8 a 17 anos, e realizadas no contraturno. Segundo informações da Secretaria de Educação, há polos localizados em 14 Coordenações Regionais de Ensino. Acesse o link para saber como se inscrever:
https://www.df.gov.br/centrode-iniciacao-desportiva-cid.
Conheça e ajude
O CID de basquete de Taguatinga funciona no Cemeit (Taguatinga Centro). Para conhecer e ajudar, acesse a o Instagram: @cid_tag_basquete