Passaporte europeu

Brasileiros investem milhões em cidadania estrangeira

É cada vez maior o número de cidadãos nascidos no Brasil que buscam uma segunda nacionalidade. Há 30 milhões de pessoas no país descendentes de italianos e pelo menos 25 milhões de filhos e netos de portugueses que podem requerer o benefício

Vicente Nunes — Correspondente
postado em 02/06/2024 06:00 / atualizado em 02/06/2024 12:02
Fábio Knauer, especialista em imigração, incentiva busca pela segunda cidadania a quem tem direito -  (crédito:  Arquivo Pessoal)
Fábio Knauer, especialista em imigração, incentiva busca pela segunda cidadania a quem tem direito - (crédito: Arquivo Pessoal)

Lisboa — Os brasileiros não estão economizando quando o assunto envolve a obtenção de uma cidadania estrangeira. A perspectiva de morar, estudar e trabalhar em países como Portugal, Itália e Espanha, usufruindo de todos os benefícios de um cidadão local, tem prevalecido, a ponto de as pessoas desembolsarem até R$ 50 mil apostando em um final feliz no encerramento dos processos. Quem não pode pagar os valores à vista está parcelando a fatura em 12 vezes. A vontade de se ter o passaporte europeu tem falado mais alto do que todos os riscos de uma negativa e, claro, dos custos assumidos.

Criada em 2019 pelos irmãos Rafael e Rodrigo Gianesini, ambos nascidos em Taguatinga, no Distrito Federal, a Cidadania4u é um retrato claro do interesse maior dos brasileiros por ter uma segunda nacionalidade. A empresa, que tem sede em Águas Claras e faturou R$ 1 milhão no primeiro ano de vida, deve registrar receitas da ordem de R$ 140 milhões em 2024. E não há qualquer exagero nessa previsão, garante Rafael. "O nosso crescimento tem superado, ano a ano, as nossas estimativas. Em 2020, foram quase R$ 4 milhões; em 2021, R$ 21 milhões; em 2022, R$ 56 milhões; e, no passado, R$ 97 milhões", detalha. "Hoje, somos 430 pessoas trabalhando em várias frentes", complementa Rodrigo.

A ideia de abrir a Cidadania4u veio da experiência pela qual os dois irmãos passaram para conquistar a nacionalidade italiana. "Foi um longo caminho, com muitas dificuldades. Nosso processo começou em 2008 e durou quase 10 anos", conta Rafael. Ele lembra que, enquanto a família esperava por uma resposta do consulado italiano sobre a cidadania, alguns amigos aventaram a possibilidade de ele trabalhar em Portugal, que estava à procura de profissionais da área de tecnologia. Sendo cidadão europeu, tudo seria facilitado. "Foi, então, que decidimos ver em que pé estava o nosso processo e como poderíamos agilizá-lo", frisa.

De cara, os dois empreendedores perceberam que havia muitos golpes nas redes sociais, dados por pessoas que se aproveitavam do sonho de ser ter uma outra cidadania e vendiam ilusão para muita gente. Eles identificaram, ainda, que não havia grandes empresas nesse segmento, nem estruturas com transparência, tecnologia e escala. Rafael, que desenvolvia produtos eletrônicos para bancos, e Rodrigo, que trabalhava com infraestrutura de redes, decidiram, então, que tinha chegado a hora de dar uma nova cara ao mercado e lançar um produto inovador, que permitiria a seus clientes acompanhar os pedidos de cidadania on-line. "Construímos um App que até hoje a concorrência não conseguiu copiar", ressalta Rodrigo.

Mercado de bilhões

A visão dos irmãos Gianesini está baseada em números. Dados do governo da Itália apontam que há 30 milhões de brasileiros descendentes de italianos que estão aptos a requererem a cidadania daquele país. Supondo que todo esse contingente pagasse pelos serviços realizados pela Cidadania4u, seriam movimentados R$ 57 bilhões. Essa montanha de dinheiro se multiplicaria caso os 25 milhões de descendentes de portugueses que vivem no Brasil também resolvessem tornar-se cidadãos de Portugal. "O potencial desse mercado é enorme, mas é preciso que os processos sejam conduzidos com todos os cuidados necessários. Eu digo que a nossa principal missão é realizar sonhos. Ter uma segunda nacionalidade é como preparar um plano B, caso tudo dê errado no país de nascimento", complementa Rafael.

O desejo dos brasileiros de buscarem outra cidadania perpassa por famílias inteiras. Muitos pais acreditam que, ao darem essa oportunidade a seus filhos, estão garantindo a eles um futuro melhor, pois terão a opção de estudar fora do Brasil e, por tabela, internacionalizar suas carreiras profissionais. Com nacionalidades portuguesa, italiana e espanhola, entre outras, poderão desbravar toda a União Europeia, formada por 27 países, sem a necessidade de vistos de trabalho ou de estudo e com acesso integral aos sistemas públicos de saúde.

cidadania portuguesa
cidadania portuguesa (foto: Pacífico)

As vantagens dos cidadãos europeus 

"Há outro ponto que muita gente está levando em consideração: os cidadãos europeus têm vantagens para se estabelecerem nos Estados Unidos. Não enfrentam a burocracia que os brasileiros têm de encarar", destaca Fábio Knauer, sócio-fundador da Aliança Portuguesa, especializada em imigração. Para ele, aqueles que têm direito devem requerer a segunda cidadania, pois há interesse de muitos países em renovar suas populações — Portugal, Itália e Espanha têm as maiores parcelas de idosos da Europa —, suprir o mercado de trabalho e estimular suas economias. Não à toa, têm flexibilizado as regras.

No caso de Portugal, em 2020, o governo fez a nona mudança na legislação para permitir que netos de portugueses nascidos em outros países pudessem pedir diretamente a nacionalidade e ainda repassá-la para duas gerações adiante. Até então, a cidadania portuguesa só poderia ser dada aos filhos e aos netos, que tinham de cumprir uma série de requisitos e, quando morriam, encerravam o direito à nacionalidade a seus descendentes. Portugal também permite que estrangeiros sem vínculos sanguíneos com portugueses possam pleitear a cidadania. Para isso, o interessado deve morar, legalmente, por cinco anos no país. Esse benefício tem sido requerido por milhares de brasileiros que migraram para o território luso.

É o caso da arquiteta e urbanista Juliana Mizumoto, 38 anos. Ela embarcou para Portugal em setembro de 2017 a fim de fazer um doutorado em sua área de atuação e dar início à internacionalização de sua carreira. Graduada pela Universidade de São Paulo (USP), é consultora em construção digital a partir de Lisboa. Após concluir o PhD, Juliana deu entrada no processo para a obtenção da nacionalidade portuguesa por tempo de residência.

Ela não tem dúvidas de que os direitos oferecidos pela segunda cidadania vão beneficiar sua trajetória profissional. "Atualmente, tenho um trabalho em Portugal também relacionado a minha área de formação, mas quero manter as portas abertas para, no futuro, poder explorar novas possibilidades profissionais na Europa. Quando completaram os cinco anos e três dias, fiz o pedido de cidadania e, enquanto aguardo a emissão do meu novo passaporte, mantenho a minha autorização de residência pelo visto de alta qualificação", afirma.

Entre 2010 e 2023, quase 500 mil brasileiros conseguiram a cidadania portuguesa, segundo o Ministério da Justiça de Portugal. A advogada Karine Egypto, da Destinos Objetivos Consultoria Internacional, explica que os documentos básicos para o pedido de nacionalidade portuguesa são certidão de nascimento, documento de identificação e antecedentes penais. Ela detalha que, fora isso, cada tipo de nacionalidade exige documentos específicos que comprovem o direito. Para a solicitação de um filho de português, por exemplo, a certidão de nascimento do pai ou mãe é imprescindível. O pedido para cônjuge exige a apresentação da certidão de casamento ou sentença judicial que reconheça a união por mais de três anos, sendo que os documentos também precisam ser legalizados de acordo com o país de sua origem.

  • Juliana Mizumoto está requerendo a cidadania portuguesa
    Juliana Mizumoto está requerendo a cidadania portuguesa Arquivo pessoal
  • Francisco Zagari, professor da SEDF, está pleiteando a nacionalidade italiana
    Francisco Zagari, professor da SEDF, está pleiteando a nacionalidade italiana Arquivo Pessoal
  • Fábio Knauer, especialista em imigração, incentiva busca pela segunda cidadania a quem tem direito
    Fábio Knauer, especialista em imigração, incentiva busca pela segunda cidadania a quem tem direito Arquivo Pessoal
  • O advogado Fábio Pimentel acredita no aumento de pedidos de cidadania
    O advogado Fábio Pimentel acredita no aumento de pedidos de cidadania Arquivo Pessoal

Movimento natural 

A flexibilização da Itália abriu o precedente para que os requerentes da cidadania italiana possam recorrer à Justiça contra a demora para a finalização dos processos, que têm levado até 12 anos. Isso, sem que as pessoas tenham de passar um tempo no país europeu, como é exigido normalmente. Já o governo da Espanha passou a permitir que netos de espanhóis peçam diretamente a cidadania nos consulados instalados nos países em que nasceram, sem precisarem morar por, no mínimo, um ano na terra de seus antecedentes.

"Estamos vendo um movimento natural dos brasileiros em busca de outra cidadania. A flexibilização das regras por vários países decorre, sobretudo, do envelhecimento da população e da necessidade premente de mão de obra", diz o advogado Fábio Pimentel, do escritório Pimentel Aniceto Associados. No entender dele, deve haver, no entanto, uma coordenação entre as políticas de incentivo para a obtenção da nacionalidade e mesmo do processo migratório com as questões econômicas, para que não se criem problemas sociais.

Mesmo a rigorosa Alemanha está mexendo nas regras, a ponto de reduzir de cinco para três anos o tempo necessário para que um trabalhador da indústria de base que more no país tenha direito à nacionalidade alemã. Pimentel acredita que os governos dos países europeus estão atentos no sentido de atrair descendentes de cidadãos que migraram para o exterior como público prioritário para reforçar as populações locais. Portugal, por exemplo, dá sinais claros de que optou pelos brasileiros, pela proximidade da língua e cultural. "As políticas de incentivos devem mirar todos os públicos, principalmente, aquele voltado para o setor de serviços, que sustenta o PIB (Produto Interno Bruto)", acrescenta.

Professor da Secretaria de Educação do Distrito Federal, Francisco Zagari, 58, já tem cidadania portuguesa e a estendeu aos dois filhos e aos três netos. Mas, como o bisavô nasceu na Itália, ele decidiu também pedir a nacionalidade italiana. "Estou fazendo isso para que as futuras gerações da minha família possam ter a opção de viver, estudar e trabalhar no exterior. Tenho parentes no interior de São Paulo e de Minas Gerais que já conseguiram a nacionalidade italiana. Então, achei por bem dar início ao processo", destaca. Ele vai gastar R$ 40 mil nessa empreitada, envolvendo quatro pessoas. "Esse gasto valerá muito a pena no futuro", assinala.

A meta de Zagari é que, principalmente, os três netos tenham a oportunidade de estudarem na Europa, podendo desenvolver uma bela carreira profissional mundo afora. "Meus dois filhos são concursados e ainda não se sentem confortáveis para viver no exterior. No entanto, farei de tudo para que meus netos possam ter essa oportunidade", ressalta. "Eu, particularmente, já decidi que, depois de me aposentar, vou mudar para Portugal, terra do meu pai e da minha avó, que deixaram suas vidas para trás em 1958, ao emigrarem para o Brasil por causa da ditadura salazarista", afirma.

cidadania italiana
cidadania italiana (foto: Pacífico)

Ricos também querem

Mesmo entre os brasileiros de altíssima renda, o desejo de uma outra cidadania é latente. Sócio-diretor da gestora de recursos Heed Capital, Gustavo Caiuby conta que empresários e altos executivos, que ainda estão em plena atividade no Brasil, têm recorrido aos vistos gold para, ao final de cinco anos, terem direito à nacionalidade portuguesa. Até outubro do ano passado, esse movimento se dava por meio da compra de imóveis em Portugal avaliados a partir de 500 mil euros (R$ 2,9 milhões), mas esse mecanismo foi proibido pelo governo.

As portas continuaram abertas, porém, para os interessados em destinar os mesmos 500 mil euros ou mais para terras lusitanas por meio de fundos de investimentos multimercados, que apliquem, no mínimo, 60% do patrimônio em ações, debêntures e bônus de empresas portuguesas, ou para fundos de venture capital, voltados para participações acionárias em firmas de tecnologia e startups. Outra modalidade de investimentos mirando a nacionalidade portuguesa prevê a destinação dos recursos para a criação de empresas em Portugal que gerem 10 empregos ou mais. Essa mesma quantia pode ser usada para o reforço de capital de uma companhia com as mesmas características.

Caiuby afirma que a cidadania portuguesa e mesmo a autorização permanente de residência em Portugal são muito desejadas pelos endinheirados, porque permitem a livre circulação pelo Espaço Schengen, que engloba os 27 países da União Europeia.

"A maioria dos nossos clientes continua no mercado de trabalho, portanto não deseja se mudar agora para Portugal. Por meio dos vistos gold, precisam passar apenas sete dias no país no primeiro ano do investimento, depois 14 dias nos dois anos seguintes e outros 14 ao longo de mais dois anos. Nos pedidos normais de autorização de residência, é exigido que a pessoa fique pelo menos 180 dias por ano em Portugal", ensina.

A tendência, acredita Caiuby, é de a procura pelos vistos gold se acelerar nos próximos meses e anos. Entre os brasileiros, que têm R$ 126 milhões sob gestão da Heed, Portugal é encarado como a principal porta de entrada para a Europa. E a dupla cidadania é um ativo e tanto. No total, desde 2012, quando os vistos gold foram lançados pelo governo português para atrair capital, os brasileiros aplicaram R$ 473 milhões no país, atrás apenas dos chineses, que destinaram cerca de R$ 2 bilhões. Os chineses, assim como os indianos e os japoneses, optam por pedir a autorização permanente de residência em Portugal, e não a cidadania, pois teriam de abrir mão da nacionalidade original. Não é o caso dos brasileiros.

 


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