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'Os alunos precisam ser mais felizes', diz professora da educação especial

Há mais de 20 anos lecionando para estudantes com deficiência e do espectro autista, Mariany Matos leva a arte como ferramenta de transformação

A professora Mariany Matos dos Santos, 46 anos, é dançarina, artista e apaixonada pela educação. Herdeira de uma geração de educadoras, transformou o ofício em arte e se agarra tanto à força ancestral que carrega em suas veias quanto à evolução de seus alunos para seguir numa carreira tão desafiadora. Mary, como é conhecida, constata a evolução do magistério desde que sua mãe, uma experiente alfabetizadora de Brasília, começou a trabalhar. Mas observa que a necessidade de valorização da categoria persiste, e mantém a luta por melhores condições de trabalho a todos os docentes da cidade e do Brasil.

Há 24 anos concursada da Secretaria de Educação do DF, Mary leciona no Centro de Ensino Especial 1 do Guará. Em sua sala de aula, as conquistas de cada aluno com deficiência ganham significado especial, destacando-se nas obras de arte nas paredes ou num simples gesto que antes era impossível de se ensaiar.

"Eu quis me transformar em professora de artes porque gostava muito de pintura. Como minha mãe foi professora, eu tinha muita liberdade para isso. Na casa da minha avó, em Paracatu (MG), eu explorava o ambiente, gostava de decoração", relembra Mary sobre o motivo de ter escolhido a carreira e a especialização em artes. No quintal dessa mesma casa na cidade de Minas Gerais, a casinha de brincar que o tio construiu era outro refúgio para a criatividade da criança agitada e cheia de imaginação.

A inspiração para lecionar veio de várias fontes: mãe, tias e professoras da educação infantil. A matriarca, Célia Matos dos Santos, hoje com 72 anos, foi alfabetizadora por 25 anos, na M Norte, em Taguatinga, e no Guará. "Foi muito incentivador e estimulante", conta a professora, que lembra de reproduzir o aprendizado nas brincadeiras, dando aulas até para as bonecas. "Sempre fui muito expansiva. Eu podia criar e recriar o que quisesse. Minha mãe brincava muito comigo de boneca", recorda-se, com carinho.

Filha de pai preto, José Carlos, e de uma família afrodescendente de Paracatu, ela carrega essa herança com orgulho e conta que a liberdade concedida em casa, de poder ser o que quisesse, a protegeu de viver o preconceito. "Eu danço, já fiz balé, jazz", elenca.

Dona Célia é só orgulho da filha. "Ela é uma professora bem dedicada, como eu fui. Eu a criei estudando, tinha horário para tudo: estudar, brincar, dormir", conta a matriarca sobre a rotina regrada. Durante o período em sala de aula, chegou a ser agraciada com prêmio de melhor alfabetizadora do Distrito Federal e, como recompensa, ganhou um curso na Universidade Católica. "Eu amava ser professora. Eu amo essa profissão", reforça Célia, que agora tem a filha única como grande companheira. "E cozinha muito bem!", revela a mãe coruja.

Primeiro concurso

Mary se formou no extinto curso de magistério — que preparava professores para dar aulas na alfabetização — na Escola Maria Auxiliadora. Aos 19 anos, foi aprovada no concurso de professor da rede pública e, em seguida, passou no primeiro vestibular, na Faculdade Dulcina, onde uniu as duas paixões e cursou artes plásticas. Ela guarda com zelo a foto segurando a primeira folha de ponto na Secretaria de Educação.

Em 2001, após apresentar o projeto Criando Artes, passou a integrar a equipe da educação especial da secretaria. No CEE 1 do Guará, atende a alunos com deficiências múltiplas, deficiência intelectual e com transtorno do espectro autista (TEA), de todas as idades.

Após o primeiro projeto especial, surgiram outros dois igualmente marcantes na carreira da professora. O Expoarte Especial reúne, no Dia da Luta da Pessoa com Deficiência, celebrado em 21 de setembro, as atividades artísticas de toda a escola, e conta com a participação da comunidade escolar. Mary também promove atividades na Semana da Consciência Negra Especial, com a participação de convidados, DJ, cabeleireiros, banda de pagode e capoeira. E as ações não acabam por aí: roda de samba e feijoada também tomam conta do espaço escolar quando o objetivo é trazer felicidade e contribuir para o desenvolvimento dos estudantes. "Nossos alunos precisam ser mais felizes", atesta.

Reconhecimento

Em 2019, Mary recebeu Moção de Louvor na Câmara Legislativa do DF, por proposição do então deputado distrital Rodrigo Delmasso, em reconhecimento aos serviços prestados na área de educação no Guará e por transformar a vida de seus alunos. Ao lado do marido, Bony da Maia, que morreu há dois anos, subiu à tribuna para receber a honraria.

Para chegar a esse patamar, ela dedica boa parte do tempo a se especializar cada vez mais. É pós-graduada em psicanálise em educação e especialista em arterapia e em artes plásticas e cênicas. Um dos sonhos para completar a formação é chegar ao mestrado e ao doutorado.

Hoje, Mary observa com preocupação a falta de interesse pela carreira de professor, e credita esse movimento à falta de valorização. "Os mais jovens não se interessam por ser professor. Parte escolhe a área de TI; outros, preferem se tornar empreendedores. Eu convivo com os filhos das minhas amigas e ninguém quer ser professor. Nós passamos por muitas situações de calúnia, somos retaliados diariamente, tanto na educação pública quanto na particular", relata.

Foco no futuro

O que a mantém firme na sala de aula — e faz parte do conselho que ela deixa às novas gerações — é o impacto social. "Um professor que ama o que faz certamente terá grandes frutos", garante Mary, que hoje é colega de trabalho de uma ex-aluna. "É muito bom você ver uma pessoa crescendo, saber que colocou uma sementinha e que ela aproveitou."

"Na educação especial, eu tenho alunos que evoluem a cada dia, dependendo da modalidade. Há alguns que já são pais, mesmo deficientes", conta a professora. "Faltam agora só quatro anos para me aposentar, e eu vou agradecendo diariamente a Deus por tudo isso que já vivi, mas compartilho também as dificuldades que passamos", completa Mary. "Para mim, a educação trouxe uma transformação. É você reconhecer o ser como um ser completo, único."

Ela lembra não apenas das lutas da categoria atualmente, por reajustes e melhores condições de trabalho, mas também do quanto as batalhas travadas por sua mãe e suas tias ajudaram no processo. As veteranas encararam jornadas duplas de trabalho e o extinto "turno da fome", que recebia alunos próximo ao horário do almoço e oferecia uma refeição. Muitos iam para o colégio porque seria a única oportunidade de se alimentar no dia. "Minha mãe mesmo alfabetizou uma turma com comida", relata Mary Matos, e reforça os avanços e as lutas atuais: "Hoje, eu gozo de uma jornada ampliada e, agora, luto para que os concursados sejam chamados".