As empresas brasileiras que promoverem diretrizes e ações voltadas para a saúde mental de seus colaboradores, a partir deste mês, poderão receber o Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental do governo federal. A determinação está prevista no Projeto de Lei 14.831/2024, recentemente aprovado pelo Senado Federal.
Para entender mais sobre o tema, o Correio entrevistou o doutor em psiquiatria Pedro Shiozawa, especialista em pesquisa clínica aplicada na Harvard Medical School e professor do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP). Confira abaixo.
O que a aprovação da Lei 14.831/2024 significa para as discussões sobre a saúde mental do trabalhador brasileiro?
Essa lei, ao estabelecer diretrizes e obrigações claras para a proteção e promoção da saúde mental no ambiente de trabalho, representa um marco significativo nas discussões sobre bem-estar do trabalhador brasileiro. De maneira explícita, passa-se a mensagem de que olhar para saúde mental é um valor, é algo importante, sério e que tem desdobramentos relevantes para a sociedade. Temos que lembrar que o tema ainda é um tabu em nossa sociedade e que a aprovação da referida lei é um grande passo no caminho da quebra de estigmas e de preconceitos sobre o tema.
Só a lei é suficiente para melhorar as condições no ambiente laboral? Que outras ações e fatores são importantes nesse processo?
Não. A lei é um passo fundamental, mas não suficiente. Agora, devemos focar nos desdobramentos e nas portas que a aprovação da lei abre. Agora é a hora de as organizações, de maneira responsável, revisitarem suas abordagens com saúde mental por meio da criação de programas robustos e relevantes focados em capacitação, mensuração e suporte. Essas ações devem ter caráter contínuo para que as empresas possam gerenciar a construção de uma cultura saudável em sua identidade. Para tanto, contar com ferramentas assertivas de mensuração de bem-estar, treinamentos com especialistas e abordagens ferramentais com informação de qualidade são algumas das estratégias que deverão acontecer cada vez mais. No fim do dia, temos que lembrar que saúde mental é um valor a ser construído internamente nas empresas e continuamente lapidado.
Sabemos que ansiedade e depressão são as doenças do século. Mas quais outras são ligadas exclusivamente ao trabalho?
Existem condições psiquiátricas que podem ter como fatores contributivos para seu aparecimento ou agravo algumas relações disfuncionais do trabalho, como o caso do transtorno do estresse pós-traumático, transtorno de adaptação e transtornos do humor, por exemplo. No entanto, pensar numa condição exclusivamente relacionada ao trabalho nos remete ao famigerado quadro do burnout, que, vale destacar, não é tido no meio médico como status de doença, mas, sim, como uma condição resultante do estresse crônico no trabalho que não foi gerenciado com sucesso. O burnout caracteriza-se por esgotamento, cinismo ou sentimentos negativos relacionados ao ambiente, e uma eficácia profissional reduzida. É atualmente reconhecida pela OMS como uma síndrome relacionada exclusivamente ao trabalho. Mas, para além de pensarmos em transtornos propriamente ditos, temos que lembrar que, quando coisas estressantes acontecem, a gente se perturba. Assim, é comum que tenhamos reações frente a esse tipo de estresse, como insônia, irritabilidade, falha de memória e manifestações físicas, sem que elas representem uma doença propriamente dita.
Como as empresas podem se cadastrar para receber o certificado?
Para receber o certificado, que terá validade de dois anos e será outorgado por uma comissão do governo a ser ainda criada, a empresa deve preencher três requisitos fundamentais:
1- Implementar programas de promoção da saúde mental no ambiente de trabalho, por exemplo, por meio de recursos de apoio psicológico e psiquiátrico para seus trabalhadores; conscientizar sobre a importância da saúde mental por meio da realização de campanhas e treinamentos, capacitar as lideranças e mensurar o bem-estar com ferramentas assertivas e relevantes;
2- Promover um ambiente de trabalho seguro e saudável (por exemplo, a partir de incentivos ao equilíbrio entre vida pessoal e profissional e prática de atividades físicas);
3- Divulgar as ações e políticas relacionadas à promoção da saúde mental e do bem-estar de seus trabalhadores.
Qual o principal desafio para o avanço da pauta no país? Há esperança?
O principal desafio ainda é o estigma. Numa pesquisa recente de nosso ecossistema em parceria com a GPTW, observamos que, para 2024, o principal desafio de gestão para as lideranças ouvidas na pesquisa é a saúde mental. No entanto, apenas cerca de metade das empresas possui orçamento direcionado para investir na mudança. Essa desconexão entre entender a relevância do tema e possuir instrumentos e budget (orçamento) para endereçar a questão ainda é um grande desafio. Na minha opinião, essa desconexão ainda decorre do não entendimento de que, quando falamos sobre crescimento, engajamento, metas e lucro, estamos também falando sobre saúde mental. Sabemos, na verdade, que times com melhores índices de bem-estar emocional são times mais engajados e produtivos, onde há expressiva queda de turnover (rotatividade) e maior retenção de talentos. Assim, sem dúvidas, há esperança e essa esperança é pautada fortemente na criação de uma cultura mais positiva sobre saúde mental, que cada vez mais deixa de ser papo de doença e vai se tornando papo de negócio.
Diante de um mercado de trabalho cada vez mais exigente, qual conselho de ouro você daria aos profissionais para preservar a saúde?
Acredito que estar aberto a falar sobre saúde mental e entender que nossas emoções entram catraca adentro na empresa sejam a chave. Levantar a mão e pedir ajuda quando for necessário e cada um saber seu papel nesse processo é garantia da transformação. Se aprendemos algo na pandemia, foi que as pessoas são o bem mais valioso de uma organização. Não tenho dúvida. Olhar para saúde mental é o melhor para os indivíduos, para os negócios e para a sociedade. Esse é um caminho sem volta.