O Brasil lidera o ranking de países que mais assassinam pessoas trans e travestis há mais de 14 anos, de acordo com a ONG Transgender Europe. A violência em proporções alarmantes acompanha uma triste realidade em relação às condições de vida dessa população no país, em especial, sua formação profissional e inclusão produtiva.
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Um levantamento realizado pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) mostrou que, até 2018, dos 4 milhões de brasileiros autodeclarados transexuais, apenas 0,3% estavam presentes em universidades e escolas. "Para termos educadores trans, primeiramente, precisamos dar uma chance para essas pessoas alcançarem uma formação", diz Dom Condeixa, 57 anos, professor trans da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).
Segundo ele, muitas pessoas trans não conseguem concluir os estudos devido à intolerância de gênero dentro dos ambientes educacionais, por isso é fundamental o estabelecimento de políticas afirmativas para apoiar a formação e inserção profissional desse público no mercado de trabalho.
Dom se assumiu como trans recentemente e conta que, apesar de ser homem, branco e de classe média, ainda consegue perceber diferenças de tratamento em seu ambiente de trabalho. "Eles nunca vão me tratar como uma pessoa cisgênero, alguns deles ainda se referem a mim pelo meu nome de batismo."
O Supremo Tribunal Federal decidiu pela criminalização da homofobia e da transfobia em 2019. A determinação equipara a discriminação de gênero a crimes cometidos por preconceito de raça ou cor, segundo a Lei do Racismo (7.716/1989). O decreto Nº 8.727/2016, que regulamenta a norma, afirma que: "A pessoa travesti ou transexual poderá requerer, a qualquer tempo, à inclusão de seu nome social em documentos oficiais e nos registros dos sistemas de informação, de cadastros, de programas, de serviços, de fichas, de formulários, de prontuários e congêneres dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional."
Ações afirmativas
Em julho de 2023, a deputada Erika Hilton (PSOLSP) apresentou projeto de lei no Congresso Nacional que visa estabelecer a reserva de 5% das vagas para pessoas trans e travestis nas universidades federais e institutos federais de ensino superior. O projeto, cuja idealização se deu em conjunto com 15 organizações e coletivos estudantis trans, abrange graduação, pós-graduação e demais etapas de ensino, e inclui providências relacionadas à identificação, permanência e inclusão desses grupos no espaço universitário e no mercado de trabalho.
Aceitação
Nascida em Açailândia, no Maranhão, a ex-professora de matemática Natalha Claudinei Silva, 39 anos, mulher trans e negra, conta ter passado por inúmeras situações negativas com seus colegas de trabalho em colégios do Distrito Federal e Entorno. "Lembro que, logo em meu primeiro contato com a escola, já fui vítima de olhares negativos. A coordenadora até chegou a me questionar o que eu estava fazendo ali, ninguém esperava que eu fosse trans e negra."
Naty, como é conhecida pelos mais próximos, diz que as maiores dificuldades que enfrentava não eram em sala de aula. "Minha relação com as crianças era ótima e eu sempre amei ensinar, mas aquele ambiente me adoeceu, eu chorava todos os dias", lembra.
Hoje, ex-professora, ela gerencia sua própria ONG, o Instituto IPI - Incluindo para Incluir, onde trabalha com causas sociais e ambientais. Naty afirma que abandonou a profissão porque não sofria apenas com comentários negativos, mas, sim, com uma perseguição explícita por conta de sua identidade, tendo sua credibilidade como profissional questionada, sendo alvo de falsas acusações, fofocas e várias provocações, chegando ao ponto de ter que recorrer à Justiça. "Eu ficava perplexa, ia parar na coordenação quase todo dia e sempre por um motivo mais absurdo que o outro, já me acusaram até de tentar influenciar meus alunos."
Jaqueline Gomes de Jesus, 46 anos, também professora e mulher trans, é psicóloga e coordenadora do Estudo SMILE, pesquisa realizada no Brasil, Quênia e Vietnã sobre as experiências de vida de pessoas que se identificam como minorias sexuais e/ou de gênero. Assim como Natalha, ela conta ter sofrido com a desvalorização de seu trabalho. "O problema mesmo sempre foi com os outros funcionários, eles pareciam não querer ver meu potencial e esforço, tudo porque eu não me encaixava nos padrões deles".
Estudiosa a respeito da saúde mental de pessoas LGBTQIAP, ela afirma que a inclusão é "o básico esperado dentro de uma democracia. Comportamentos excludentes geram pobreza intelectual e a falta de diferentes personalidades, além de desestimular, também faz mal para a autoestima de estudantes e professores".
Segundo cartilha divulgada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais em janeiro de 2024, as violências físicas e psicológicas sofridas por pessoas trans em família e no mercado formal de trabalho estão entre os principais fatores que podem deteriorar sua saúde mental e levar ao suicídio. A expectativa de vida de pessoas trans é de 35 anos, de acordo com um levantamento realizado na associação europeia TransRespect em 72 países.
Luta comum
A Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil, de 2016, apontou que pelo menos 73% dos estudantes da comunidade LGBTQIA já relataram terem sido agredidos verbalmente e outros 36%, fisicamente. A intolerância sobre a sexualidade e o gênero levou 58,9% desses alunos que sofreram violência a faltar às aulas, pelo menos, uma vez ao mês.
O professor trans de educação física da Secretaria da Educação do DF, Lorran da Silva, 29 anos, reforça que enfrentar o preconceito como estudante foi, de fato, mais difícil do que como educador, já adulto. "A maioria dos meus professores não aceitavam meu nome social, me olhavam como se tivesse algo errado em mim", fala.
Lorran fez a transição de gênero ainda jovem e destaca como a passabilidade influencia dentro do ambiente de trabalho. "Muitos dos meus colegas não sabem que sou um homem trans, e por mais triste que pareça, muitas vezes isso acaba me servindo de proteção", diz. Passabilidade é um termo utilizado para se referir a pessoas trans que se aproximam dos estereótipos do gênero com os quais se identificam.
Por esse motivo, ele conta que não costuma enfrentar preconceito na sala dos professores, mas, por diversas vezes, se surpreende com comentários pejorativos de colegas falando sobre alunos não-cis. O professor trabalha, principalmente, com turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Quando escuta o preconceito destilado por outros educadores, sente, na pele, a dor desses jovens: muitos ali viveram trajetórias escolares irregulares e atrasaram os estudos justamente porque foram submetidos a ambientes hostis, que bloquearam seu desenvolvimento pessoal.
"Quando eu escolhi meu curso, tudo o que eu pensava era em como eu poderia mudar o mundo e dar acolhimento para aqueles que passam pela mesma situação que eu. Tento proteger meus alunos ao máximo porque sei como as pessoas podem ser ruins e como o mundo é perigoso para nós", diz Lorran.
Além de terem vivido trajetórias parecidas, de opressão e luta por sua dignidade, Dom, Natalha, Jaqueline e Lorran pensam a educação de forma parecida. Os professores destacam a necessidade de promover a formação contínua dos educadores e de criar ambientes seguros e acolhedores para que esses profissionais possam exercer sua vocação e para que os estudantes possam se expressar sem medo ou tabus, por meio de uma educação transformadora que promova a construção de uma sociedade mais inclusiva e igualitária. Como o professor Dom costuma dizer a seus alunos: "Não adianta chamar para a festa se você não vai puxar para dançar junto. Temos que incluir todos de verdade."
*Estagiária sob a supervisão de Priscila Crispi