As palavras têm poder transformador. Foi partindo dessa premissa que a professora Gina Vieira Ponte de Albuquerque idealizou e gestou o projeto Mulheres Inspiradoras, que completa 10 anos em 2024. Desde então, ela já foi premiada na Câmara Legislativa, na Câmara dos Deputados, no Senado e na Casa do Cantador. É reconhecida entre os pares e admirada por estudantes, aos quais ainda chama pelo nome. Apesar de aposentada desde 2022, não largou o chão da escola, e aproveita as oportunidades de disseminar o conhecimento. "Até hoje, quando entro em uma escola, sinto um frio na barriga", conta.
Conheci Gina há quase 10 anos, no CEF 12 de Ceilândia, onde o projeto nasceu. Ela celebrava os dois primeiros prêmios da iniciativa, um deles concedido pelo Ministério da Educação. Os alunos, parte essencial do processo, a seguraram nos braços para a foto que estampou a página do jornal. A felicidade transbordava em seu sorriso. Os cabelos longos e cacheados, passavam por uma transição que ela havia começado meses antes, graças às descobertas feitas ao longo da pesquisa para o projeto.
"Eu mesma fui muito transformada pela experiência do projeto. Fortaleci e aprofundei a minha consciência racial e de gênero. Passei a compreender, em camadas muito mais profundas, como as desigualdades entre homens e mulheres, pessoas negras e pessoas brancas, atravessam as nossas trajetórias. Ampliei o meu repertório sobre histórias de mulheres, sobre obras literárias de autoria feminina e negra. Vejo a professora que eu era em 2014, há 10 anos, quando o projeto começou, e percebo o quanto eu mesma tive a chance de me transformar."
Hoje, os cabelos exibem o black poderoso que emoldura o rosto à forma de uma coroa, assim como descreve a poeta Cristiane Sobral na obra que mudou a vida de Gina. A professora havia chegado aos 42 anos de idade sem nunca ter encontrado um texto em que a identidade de pessoas negras fosse celebrada, e não vista de maneira negativa ou pejorativa. "Na obra de Cristiane Sobral, os nossos cabelos são representados como árvores frondosas, como coroas na cabeça de rainhas que já nascem coroadas."
Legado duradouro
O legado dos pais, o cearense Moisés e a mineira Djanira, ela carrega com orgulho. Os dois chegaram a Brasília ainda na década de 1960 e se conheceram anos mais tarde, na Vila do IAPI, onde nasceu a filha mais velha, Gisele, em 1970. Depois da transferência de toda a população para a recém-criada Ceilândia, veio Gina, em janeiro de 1972. Os outros quatro chegaram em seguida: Janne, Moisés, Matheus e Jannece. "Dois com a letra G. Dois com a letra M. Dois com a letra J. Invenções da dona Djanira", diverte-se a professora.
"Quanto mais o tempo passa, mais eu sou grata aos meus pais. Eles tiveram tão pouco da vida, tão pouco, mas eles me deram tanto", emociona-se Gina, lembrando como os dois se completavam numa parceria perfeita, e com um objetivo em comum. Ela, uma mulher negra no Brasil dos anos 1970, sabia que ter um homem branco ao seu lado consistia um fator importante de proteção para si e para os filhos. Ele, que havia sofrido um golpe logo na chegada à nova capital por ser analfabeto, olhava com reverência para aquela mulher que dominava a leitura e a escrita.
"Eles somaram o que tinham de fragilidade e de potencialidade e definiram como um projeto de vida garantir que nós tivéssemos as oportunidades que foram negadas a eles", conta Gina. A família viveu por anos em condição de extrema vulnerabilidade. A infância sem festas de aniversário, com roupas e calçados velhos e puídos, banho de água gelada e fome marcou a história da professora ceilandense, mas nunca se tornou motivo de mágoa. "Minha mãe fez de um jeito que isso não incutiu em nós um sentimento de derrota, de sofrimento e de menos valia. Ela tinha uma uma coerência discursiva que nos ajudava a entender: 'A gente está colocando recurso, tempo e energia naquilo que realmente interessa, que é o futuro de vocês.'"
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Do quintal cheio de legumes, verduras e ervas, dona Djanira tirava parte da comida que seria servida à mesa. Em um dos momentos mais dramáticos da família, ela conseguiu transformar um único ovo de galinha a ser dividido para oito pessoas em banquete, acompanhado de folhas de assa-peixe à milanesa. "Não tínhamos dinheiro para fazer mais do que café da manhã, almoço e jantar. Então, naquele horário entre a tarde e a noite, que te dá uma fome absurda, não tinha o que comer. Eu corria no quintal, pegava alfavaca, lavava as folhas, colocava no bule, fervia, colocava açúcar e tomava. Aquilo acalmava a minha fome."
Gina também era, além de tudo, uma menina muito curiosa, de ouvido atento para as histórias, principalmente as que a mãe contava, sobre violência, preconceito e superação. "Foram essas histórias que me nutriram para me dar a consciência de que eu não tinha vindo de um lugar pequeno. Eu tinha vindo de uma linhagem de pessoas muito fortes, muito corajosas. Aquilo me alimentava, me dava convicção e aterramento."
Ao mesmo tempo que lutava pelo sustento dos filhos, o casal nunca deixava de mostrar a importância da educação. "Meu pai falava de escola como algo que me daria superpoderes", conta Gina. O preço a pagar não foi baixo, custou vida e saúde, como observa a professora. "Não por acaso, os dois não estão mais aqui. Morreram muito jovens. Ele com pouco mais de 50 anos. Ela, com 66. Foi uma vida de muita luta e sacrifício."
Sonho estraçalhado
Ainda durante a alfabetização, Gina viveu o paradoxo de ver a escola, o lugar que em seu coração ela tratava como um templo sagrado, tornar-se palco de sofrimento e de ofensas. Elas vinham dos colegas, que riam dos cabelos trançados, e da professora, que excluía e maltratava alunos pretos e em situação de vulnerabilidade como ela.
"Daquela menina que entrou com o olho brilhando para aprender, passei a sonhar em ser invisível", explica. "As violências foram tantas e tão intensas que eu não tinha repertório e não as associava com racismo. Então, acabava acreditando que tinha alguma coisa muito errada em mim."
Gina saiu da primeira série pensando que não sabia ler. Sentia-se uma farsa. Na segunda série, porém, um encontro fundamental transformou esse caminho. A professora Creusa Pereira, negra retinta, surge não só com um colo para os momentos de tristeza, mas também como referência de mulher ocupando um espaço que não fosse subalternizado. "No encontro com a professora Creusa eu forjei o meu conceito do que é ser professora."
Naquele ano, veio o primeiro elogio ao cabelo trançado e o primeiro convite para participar de uma apresentação na escola, de fantasia e com maquiagem que deslumbrava em frente ao espelho. "Eu recebi um banho de amor que me marcou tanto que eu construí a ideia de que ser professora é isso: alguém que vai entrar na vida de uma criança, de um adolescente, para fazer a diferença. Carrego isso até hoje."
Nasce uma professora
"Outra coisa que eu aprendi é que, na educação, quando você muda a vida de uma criança, você muda a vida de uma família toda", analisa a professora. Gina formou a primeira turma por volta dos 11 anos de idade. Foram os três irmãos mais novos. "Eu chamei os três e disse: 'Vocês vão entrar na escola sabendo ler. Vocês não vão passar pelo que eu passei'". Hoje, dois deles são professores e a mais velha atua como orientadora educacional na rede pública.
Aos 11 anos, ela participou pela última vez da tão aguardada colônia de férias, ofertada anualmente pelo Governo do Distrito Federal a alunos da rede pública. Foi nesse projeto que ela curtiu a Piscina com Ondas do Parque da Cidade e pisou pela primeira vez em um cinema. No mesmo ano, ganhou um concurso de redação, concorrendo com crianças de todo o DF. O tema era aviação civil e uma palestra do professor Batista, monitor da colônia, foi suficiente para a perspicaz aluna gabaritar o texto e ganhar uma viagem a São Paulo.
Seu Moisés acompanhou a filha ao gabinete da então secretária de Educação, Eurides Brito, para receber o prêmio. A equipe da secretaria se sensibilizou com a situação da família e fez uma vaquinha para arrecadar roupas para a viagem. "A recordação que eu tenho é daquela sacola de roupas doadas pelos funcionários da secretaria chegando lá em casa e aquele monte de menino que não tinha roupa para vestir. Eles falavam: 'Tá vendo como vale a pena ser estudioso?.'"
Formação criteriosa
A educação salvou Gina de diferentes maneiras. Uma delas foi por afastá-la de contextos sociais que poderiam se tornar nocivos. Hoje, ela é uma árdua defensora da educação integral — que pensa o aluno em sua dimensão afetiva, cognitiva, psicomotora e emocional — e em tempo integral. Após se formar na Escola Normal de Ceilândia, ela prestou concurso e, em 11 de abril de 1991, entrou na sala de aula como professora pela primeira vez. Uma passagem como responsável pela gestão da biblioteca do CEF 10 a fez abrir os olhos para o universo da literatura. "Percebi que eu havia passado por toda a minha educação básica sem ter tido um professor ou uma professora que me falasse sobre literatura. Descobri o prazer de ler o texto literário trabalhando numa biblioteca", relata Gina.
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Ali ela encontrou o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, conheceu Clarice Lispector, Machado de Assis, e se libertou do fundamentalismo de uma religião à qual estava vinculada. "Os meus horizontes se abriram, e eu sentia uma vontade enorme de cursar letras", afirma. A formação no curso superior chegou quando ela dava aulas havia oito anos. Teve início também o trabalho com adolescentes. Gina se deparou com um cenário assustador, apesar de ao mesmo tempo muito próximo à realidade dela: jovens negros, moradores de uma região de tantas maneiras deixada à margem. Mesmo diante de esforço e empenho, a sala de aula era um caos e o desinteresse reinava. A professora adoeceu e precisou ficar um período afastada do trabalho. Mas, com a alma curiosa e a perseverança que carrega, decidiu investigar o que acontecia. Por que os jovens odiavam a escola?
Tempo de reparação
“Descobri que o que estava errado é que nós temos uma escola pública sucateada, precarizada, que é um projeto das classes dominantes para formar uma massa acrítica, dócil, que vai realizar subemprego. A escola pública tal como ela está desenhada não é feita para formar um estudante que vai acessar o conhecimento científico poderoso. Ela é muito mais um espaço de controle, de condicionamento e de padronização, para gerar obediência. O jovem vira as costas para a escola porque, primeiro, a escola vira as costas para ele.”
O ano era 2003, e ela decidiu mergulhar em qualificações e pesquisas para criar um projeto pedagógico que atendesse às demandas dos seus alunos, insatisfeitos com a lógica instrumentalizadora do ensino que era ofertado. Foram três especializações e mais de 2 mil horas de cursos de extensão para ter a base teórica da pedagogia de projetos.
Anos mais tarde, essa preparação culminaria no Mulheres Inspiradoras. A popularização das redes sociais e a forma estigmatizada como as meninas se mostravam nelas e também como eram vistas e tratadas na sala de aula e nos relacionamentos íntimos foram o gancho para estruturar uma proposta que envolvia resgate de memória, literatura e produção escrita.
O objetivo era ajudar as estudantes a olharem para outras mulheres e vislumbrarem possibilidades identitárias diversas. "Eu posso ser uma mulher grandiosa mesmo que eu não corresponda a um determinado padrão estético", lembra Gina, que usou a obra de Carolina Maria de Jesus como uma das grandes referências literárias do projeto.
No mestrado, em 2017, inspirada pelas vivências no projeto, Gina decidiu pesquisar a identidade docente e a pedagogia de projetos, no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UnB. A pesquisa foi realizada em parceria com o Gecria, Grupo de Pesquisa em Educação Crítica e Autoria Criativa, coordenado pela professora Juliana Dias.
A recompensa
Nesses 10 anos, Gina contabilizou quase 20 prêmios recebidos — os dois mais recentes no Senado Federal e na Casa do Cantador, em Ceilândia, ao lado de 27 mulheres que marcaram a história da cidade, premiação idealizada pelo professor e guardião da memória da região, Manoel Jevan. “Esses prêmios todos, quando eles começaram a aparecer, era uma forma de dizer para outros professores que outra escola é possível. Uma escola que não esteja preocupada com uma lógica assistencialista, instrumentalizadora", observa a professora, que conta com o apoio incondicional do companheiro, Edson Santos, e do filho, Luís Guilherme.
Em 2016, o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) ofereceu doar recursos para que o projeto chegasse a mais escolas e a Organização de Estados Ibero-americanos (OEI) auxiliou na gestão da verba. Quinze instituições de ensino foram contempladas. Os resultados dessa experiência-piloto contribuíram para que o projeto se tornasse parte das políticas públicas educacionais da rede pública de ensino do DF, por meio de portaria publicada em maio de 2021. Em outubro de 2022, no entanto, uma nova portaria tornou a anterior sem efeito.
"Hoje, cerca de 50 escolas dispõem das obras literárias do programa, porque, de 2017 a 2021, esse foi o número aproximado de escolas alcançadas", orgulha-se Gina, esperando que o programa tenha continuidade. Em 2018, ele foi adotado nas escolas municipais de Campo Grande, e à África em 2021.
"Como dizia a minha mãe Djanira, a boa semente encontra solo fértil para brotar e dar frutos. O Projeto Mulheres Inspiradoras tem raízes profundas, nasceu da semeadura dos meus pais, que lutaram muito para que nós tivéssemos acesso à educação. Ele não está nos gabinetes, chancelado institucionalmente, mas as ideias e as ações que ele propõe seguem circulando e sensibilizando as pessoas a se engajarem na causa da educação e na luta pelos direitos de meninas e mulheres."
Confira a lista de prêmios recebidas por Gina e pelo projeto nos últimos 10 anos:
- 4º Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos;
- 8º Prêmio Professores do Brasil;
- I Prêmio Ibero-americano de Educação em Direitos Humanos;
- 10º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, concedido pela Secretaria da Mulher do Governo Federal;
- 3º Prêmio Mulher Educadora, Cidadã do Mundo, concedido pelo Sindicato dos Professores do Distrito Federal – SINPRO
- Finalista no Prêmio Professor Nota 10, da Fundação Victor Civita
- Prêmio Flores de Aço- concedido pelo Instituto Flores de Aço
- Prêmio Mérito Buriti, concedido pelo Governo do Distrito Federal;
- Finalista do 22º Prêmio Cláudia na categoria Trabalho Social;
- Prêmio Igualdade de Gênero, promovido pela Secretaria de Cultura do Distrito Federal
- Professora Gina Vieira é personagem homenageada na IV Bienal do Livro e da Leitura de Brasília;
- Women´s Entrepreneurship Day, concedido pela WED Women´s Entrepreneurship;
- Prêmio Mietta Santiago, concedido pela Câmara Federal, indicação da deputada Érika Kokay
- Selo de Boas Práticas Pedagógicas, concedido pela Câmara Distrital;
- Professora Gina Vieira Ponte é personagem homenageada no XV Curso das Promotoras Legais Populares do Distrito Federal;
- Grau de Oficial da Ordem do Mérito concedido pela Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior-ABMES;
- Medalha da Ordem do Mérito Legislativo, concedido pelo gabinete do deputado Leandro Grass;
- Personalidade homenageada pelo Tribunal de Justiça de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, em decorrência dos 10 anos da Coordenadoria da Mulher.
- Personalidade homenageada no Odu- Festival de Arte Negra;
- Projeto Mulheres Inspiradoras é homenageado no “Encontro com o Porvir: Trajetórias de Educadores que transformam o presente e constroem o futuro”
- Concessão de Honra o Mérito, feita pela Universidade de Brasília, à professora Gina Vieira Ponte, como estudante egressa da instituição;
- Concessão da Medalha Bertha Luz, pelo Senado Federal, indicação da senadora Leila Barros, acatada pelas demais parlamentares
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