Letramento racial

Estudante de odontologia cria manual antirracista para saúde

Ariane Moura elaborou um guia para combater a discriminação de pacientes negros por profissionais da área, publicado pela Associação Brasileira de Mulheres Dentistas (ABMD)

Priscila Crispi
postado em 07/04/2024 06:00 / atualizado em 08/04/2024 13:38
"A saúde começa na educação, falta informações sobre higiene bucal, falta escova de dentes, o básico ainda não chegou na periferia", diz Ariane Moura - (crédito: Arquivo pessoal)

Em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista, diz Angela Davis, acadêmica e ativista negra dos Estados Unidos. Ser antirracista é agir, ativamente, para que a sociedade avance para o fim da exclusão e do preconceito em função de cor ou raça.

Por aqui, o racismo à brasileira se espalha por tantas camadas sociais que é necessário falar sobre atitudes antirracistas em áreas específicas — é o que pensa Ariane Moura, estudante universitária que elaborou junto com duas profissionais formadas, Joice Corrêa e Carol Lemos, o Guia Antirracista para Odontologia, publicado pela Associação Brasileira de Mulheres Dentistas (ABMD).

Aluna do quarto período da Universidade Veiga de Almeida, no Rio de Janeiro, Ariane tem apenas 21 anos, mas um sonho persistente de ser dentista e muito conhecimento para compartilhar, acadêmico e de vida. "Passei por muito racismo atá chegar no manual, que comecei a escrever no primeiro semestre de faculdade, a partir das leituras que tinha sobre questões de raça no Brasil. Eu estudo muito sobre isso, mas vi que dentro da área da saúde, esse assunto é invisível", conta.

O guia se propõe a ser um instrumento de letramento racial para profissionais da área que resulte na quebra de vieses inconscientes e procedimentos técnicos que discriminem ou ignorem as especificidades de pacientes negros. A publicação traz, por exemplo, discussões sobre a ridicularização de práticas médicas tradicionais de grupos étnicos, a falta de acesso à saúde bucal por comunidades marginalizadas e a falta de conhecimento sobre a anatomia de populações afrodescendentes.

"Muitos profissionais confundem a melanina presente em nossas gengivas com doenças. Os livros trazem informações sobre isso, mas os profissionais acham desnecessário estudá-las. Claro, são, em sua maioria, profissionais brancos que atendem a pacientes brancos", argumenta a estudante.

Em sua visão, para mudar a realidade do país com a maior quantidade de cirurgiões-dentistas, porém, com uma das maiores porcentagens de desdentados do mundo, é preciso olhar para as desigualdades raciais do Brasil. "O acesso à saúde bucal é escasso no país, vivemos em uma sociedade que ou a gente, o povo preto, come ou vai ao dentista. Mas a saúde começa na educação, faltam informações sobre higiene bucal, falta escova de dentes, o básico ainda não chegou à periferia."

Ariane diz que a inclusão dessas discussões na formação oferecida pelas faculdades de odontologia é um bom começo: "O acesso da população negra à saúde bucal seria facilitado se a gente tivesse mais referências negras de jaleco, se desse mais acesso a estudantes negros nas universidades e tivesse um atendimento mais acolhedor para pessoas pretas e pardas nos consultórios".

O caminho para seu sonho de equidade é cheio de resistências, mas a jovem já consegue vislumbrar o resultado do seu trabalho. Na última semana, uma postagem da sambista Teresa Cristina sobre o trabalho de Ariane fez o guia ganhar repercussão nacional. "Várias universidades entraram em contato comigo. Algumas, em especial no estado da Bahia, têm mostrado interesse em incluir o Manual em seus currículos. Muitos alunos também me procuraram. Eu não imaginava que ele ia ser tão abraçado assim", comemora.

Pertencimento

Ariane decidiu ser dentista aos 18 anos, enquanto estudava para o vestibular. Convidada por uma professora para conhecer um consultório odontológico no centro do Rio, saiu de lá chorando, tomada pela sensação de que tinha, finalmente, se encontrado. Criada em Japeri, na baixada fluminense, a garota sonhadora não fazia ideia dos obstáculos que encontraria pela frente.

"Na faculdade, descobri o sentimento do não pertencimento. Me deparei com o custo muito elevado dos materiais e um ambiente completamente branco. Não fui bem recepcionada por muitos colegas, e isso me assustou. Vi que o que eu estava passando tinha nome: racismo", lembra.

Para pagar o curso, um financiamento do Fies; para custear os equipamentos caros, muitos bicos — e assim, a estudante vai avançando rumo ao diploma. Primeira geração da família, junto com outras duas primas, a cursar o ensino superior, Ariane é filha de um pedreiro e uma dona de casa.

"Às vezes, cansa, porque lidar com o racismo faz a gente gastar muita energia. Além de estudar, além de trabalhar, tenho que encarar as resistências, as portas que não só não são abertas, mas são intencionalmente fechadas", comenta.

Até mesmo entre outras mulheres, que compartilham com ela a luta por mais igualdade de gênero na profissão, a garota sente que precisa dar muitas explicações. "Enquanto elas estão lutando por mais equidade nas bolsas de pós-graduação, eu ainda estou lutando pela possibilidade da existência de uma mulher negra na universidade. Mulheres brancas, às vezes, não entendem, porque nossa realidade não faz parte da dor delas", pontua.

Acesse o guia no site da ABMD, aqui.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação