Renata Netto estava há meses longe de casa e da família quando uma onda de violência atingiu o campo de refugiados mantido pela Organização das Nações Unidas (ONU) no Sudão do Sul, que abriga quase 50 mil pessoas. Um desentendimento entre os grupos internos resultou no sequestro de 70 crianças e 30 mulheres. Os negociantes conseguiram autorização para liberar os reféns, mas a polícia da ONU não tinha mulheres suficientes no contingente para entrar no campo e retirá-los em segurança para outra área. Foi então que a militar brasileira se voluntariou para a missão.
"A gente conseguiu resgatar essas mulheres e crianças e foi um momento que eu nunca vou esquecer. Algumas mulheres não tinham conseguido pegar seus filhos dentro do campo, porque eles estavam em outras áreas, por isso, elas estavam desesperadas. Enquanto nos movimentávamos nos arrastando pelo chão, a gente escutava os tiros pelo ar. Mas conseguimos reuni-los sem que sofressem nenhum mal", relembra.
Sua atuação no país africano lhe rendeu a indicação ao prêmio de Defensora Militar da Igualdade de Gênero das Nações Unidas 2023. É a primeira vez que uma profissional do Exército concorre ao prêmio, um reconhecimento da dedicação e do esforço de soldados em missões de paz sob a égide da ONU. O resultado deve ser divulgado em 29 de maio, na sede das Nações Unidas, em comemoração ao Dia do Peacekeeper (Soldado da Paz).
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A tenente-coronel, de 51 anos, é dentista de formação e entrou para a carreira militar para atuar na área da saúde, o que fez por anos em territórios como a Amazônia brasileira. Mas, desde 2017, se preparava para ingressar em missões de paz. Foram diversos cursos de línguas, sobre questões de gênero, direitos humanos e situações de conflito, além de preparo militar para encarar um país em guerra. Em fevereiro de 2023, o sonho se tornou realidade: Renata pisou em campo, pela primeira vez, como observadora militar no Sudão do Sul.
Ali, morou em um container, viveu momentos de terror quando a base onde servia foi invadida por rebeldes, encarou autoridades que duvidavam de sua capacidade por ser mulher, dormiu de capacete e colete diversas noites, sofreu pela saudade das duas filhas adolescentes que deixou no Brasil, assistiu à morte de civis sem poder impedi-las; entregou, segundo ela, o melhor de si no chão de um país assolado por uma guerra civil que causou a maior crise de deslocamento forçado do mundo.
"Os manuais da ONU dizem que nós, observadores militares, somos os olhos e ouvidos da organização no terreno. A gente está lá, desarmado, como uma mostra de boa-fé, de que você não está oferecendo risco nenhum àquela população. Nosso trabalho principal é fazer visitas às comunidades e verificar se algum direito humano está sendo violado naquela área e reportar isso para o escritório das Nações Unidas, lá em Nova York. Mas eu tentei ser mais do que isso, quis oferecer também uma mão solidária, tentei olhar com o coração, ver o que eu podia fazer para além do que estava escrito, especialmente na proteção de mulheres, e acho que por isso fui indicada ao prêmio", diz Renata.
Em sua visão, a atuação de mulheres em zonas de conflito é mais que uma medida de equidade de gênero em efetivos militares, é uma estratégia para a promoção da paz. "É muito mais fácil que mulheres consigam uma aproximação com a população local do que homens, especialmente na mitigação de casos de violação sexual. Primeiro, porque a mulher não oferece risco, principalmente, em comunidades patriarcais, que somos vistas como frágeis. Mas também porque as outras mulheres te veem como um modelo de autonomia e uma figura confiável. Então, é uma maneira de também de dar voz àquelas mulheres", pontua.
Celebração
A tenente-coronel Renata esteve presente, entre outros convidados, no seminário "Peacekeepers brasileiras: destaques do Brasil na implementação da agenda sobre Mulheres, Paz e Segurança", realizado pelo Comando de Operações Terrestres e pela Rede Brasileira de Operações de Paz, nesta semana, no Quartel-General do Exército, em Brasília. O evento celebrou e discutiu o papel de mulheres militares brasileiras que atuam em operações de paz das Nações Unidas.
Atualmente, o Brasil conta com 10 mulheres nesses campos, distribuídas no Saara Ocidental, na República Democrática do Congo, no Sudão do Sul e na República Centro Africana, além de uma oficial atuando com o tema no escritório central da ONU. O envio dessas profissionais segue agenda do organismo internacional para promover o aumento gradual do efetivo feminino por parte dos países participantes no envio de militares.
O Brasil, como membro fundador da Organização das Nações Unidas, pode enviar pessoal para missões individuais ou de tropa para compor o componente militar das missões de paz. A participação do Brasil em operações desse tipo ocorre por decisão do governo e, para o envio de tropas, com a aprovação do Congresso Nacional.
O Exército prepara os militares designados para esse trabalhado, tanto das três Forças como das Polícias Militares, por intermédio do Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB), sediado no Rio de Janeiro. No Centro, eles realizam cursos sobre o Sistema ONU, as técnicas, táticas e procedimentos utilizados em operações de paz e também de idiomas. Simultaneamente, os profissionais passam por uma preparação envolvendo aspectos de saúde física e preparo psicológico.
Priscilla Farias, 36 anos, é oficial de assuntos civis do Batalhão Uruguaio na República Democrática do Congo
Engenheira militar, entrou para as Forças Armadas em 2007. "Vejo que existe uma recepção melhor da população quando há uma mulher nas patrulhas realizadas. Ainda mais aqui, onde há um quadro grande de violência sexual contra as mulheres e desigualdade quanto à sua participação em funções importantes da sociedade."
Bianca Zary, 42 anos, é observadora militar no Saara Ocidental
Trabalha em uma região chamada Mijek, no meio do deserto, com cerca de 10 militares de diferentes nacionalidades. "Por sermos poucas pessoas e por trabalharmos isolados de qualquer vila ou comunidade, consigo perceber o quanto o brasileiro é agregador. E consigo me enxergar refletindo, em diversos momentos do meu trabalho, essa característica tão marcante do nosso povo brasileiro."
Cyntia Adames, 46 anos, é observadora militar no Sudão do Sul
Também dentista, trabalhou em Brasília e no Rio de Janeiro em ações cívico-sociais com atendimento à população. "Nesse contato com a população mais carente que surgiu o meu interesse em participar dessa missão na ONU e tentar fazer o meu melhor para ajudar esse povo que tanto necessita."
Heloisa Pinheiro, 41 anos, é oficial de Estado-Maior no Saara Ocidental
Engenheira, é casada com um militar que já atuou em operações de paz, o que a inspirou na carreira. "As missões de paz da ONU estão concentradas na África, em países de maioria muçulmana, em locais com muitos casos de violência contra a mulher e desigualdade de gênero. Nossa intenção nunca é mudar uma cultura, mas para as mulheres desses países, somos percebidas como uma referência."
Juliana Bertol, 43 anos, é observadora militar na República Centro Africana
Advogada, entrou para o Exército em 2006. "As mulheres se sentem mais à vontade para conversar com outra mulher, e isso é importante para obter informações, especialmente relativas à violência sexual relacionada ao conflito armado e à outras formas de violência contra mulheres e crianças."
Michele Oliveira, 45 anos, é oficial de Estado-Maior na República Centro Africana
Formada em direito, atuou por 20 anos na assessoria jurídica do Exército. "Decidi tentar algo novo e o ambiente da ONU me pareceu bastante desafiador." Para ela, uma das maiores dificuldades da missão é a alta rotatividade do contingente, que sempre trabalha com poucos militares.
Virlane Portela, 46 anos, é oficial de Estado-Maior na República Centro Africana
Formada em letras/português e inglês, atua como tradutora e revisora. "Quando você é jovem, você faz projeções e tem expectativas sobre sua vida. Eu, desde a adolescência, desejei poder realizar um trabalho com alcance diferenciado, especialmente de natureza internacional, e poder fazer isso hoje me realiza."
Viviene Freitas, 42 anos, é oficial de Estado-Maior no Sudão do Sul
Advogada, entrou para os quadros do Exército em 2005. "Os desafios são muitos, mas, para mim, são principalmente a distância da família, a adaptação ao país e à cultura de uma nova organização, além do desafio de desempenhar o trabalho em outra língua. Conviver e tentar entender culturas e formas de viver tão distintas é desafiador."
Ivana Costa, 55 anos, é oficial de Estado-Maior no QG da ONU em Nova York
Formada em letras, trabalhou por 12 anos na Divisão de Missão de Paz do Comando de Operações Terrestres. Tem especialização na agenda Mulheres, Paz e Seguranca, em prevenção de abuso e exploração sexual, violência de gênero relacionada a conflitos e proteção de crianças. Participou como parte do contingente brasileiro no Haiti em 2013 e 2015.
Marisa Mattos, 50 anos, é observadora militar no Sudão do Sul
Farmacêutica de formação, se voluntariou para missão de paz em 2017. "Essa foi a oportunidade de aplicar todos os meus conhecimentos de formação civil e militar, representando o Brasil em uma missão humanitária junto a populações extremamente vulneráveis, sendo uma experiência única e uma honra pessoal e profissional sem igual."
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