Carreira

Padre piauiense será o primeiro sacerdote médico do estado

Estudante de medicina, padre Raimundo do Rego quer integrar conhecimentos científicos e religiosos para promover a saúde mental entre populações vulneráveis

Correio Braziliense
postado em 31/03/2024 06:00 / atualizado em 01/04/2024 15:00
Padre Raimundo Nonato do Rego está no primeiro semestre de medicina e pensa em se especializar em psiquiatria -  (crédito: Arquivo pessoal)
Padre Raimundo Nonato do Rego está no primeiro semestre de medicina e pensa em se especializar em psiquiatria - (crédito: Arquivo pessoal)

Por Júlia Giusti* — Padre Raimundo Nonato do Rego nasceu e cresceu em Teresina, Piauí. Em 2008, se formou no seminário preparatório para o sacerdócio e atuou como pároco em diversas comunidades da região. Foi no contato com as comunidades em que trabalhou que descobriu sua segunda vocação: além de sacerdote, queria ser médico. "A medicina chegou a mim pelos problemas e as situações de muitos fiéis", diz.

Quando ingressou no seminário, em 1999, o padre integrava um grupo de jovens que realizava retiros espirituais. Os eventos foram crescendo, até que, em 2007, eles resolveram alugar uma casa, que se transformou em uma escola. Lá, realizavam atendimentos de cura e aconselhamento, além de prestar serviços de assistência social e educação. Muitas pessoas da região buscavam os serviços da casa, então, foi necessário expandir o espaço. Assim, em 2013, surgiu a Comunidade Católica Orando em Resgate da Espiritualidade (ORE), por meio de um convênio com a Prefeitura de Teresina, que concedeu um terreno para o projeto atender mais fiéis.

 

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Padre Raimundo Nonato coordena retiro de carnaval, na cidade de Pedro II (foto: Arquivo pessoal)

Entre os serviços oferecidos na comunidade ORE, havia atendimento a pessoas com transtornos psiquiátricos, como depressão, ansiedade, síndrome de pânico e ideação suicida. Raimundo conta que, ao se deparar com casos complexos, sentiu falta de uma formação em saúde— queria ajudar as pessoas para além do acompanhamento religioso. "Diante dos inúmeros casos que atendi em Teresina, lá na minha comunidade e também na paróquia, vi a necessidade de eu ter um preparo mais técnico, mais específico para essa área", relata.

O incentivo final para fazer o curso veio há cerca de dois anos, quando estudava sobre exorcismo em Roma. Ali, observou que os mestres da Igreja que trabalhavam com o tema tinham, também, formação acadêmica. "Raimundo, ou você faz medicina agora, ou você não entra nesse mundo nunca mais", pensou na época.

Aos 41 anos, encarou o desafio e se reinventou. Se dedicou por sete meses para estudar para o Enem e, neste ano, foi aprovado na Universidade Paulista, no campus de Campinas. Quando se formar, Raimundo se tornará o primeiro padre médico do estado do Piauí.

Defensor da formação acadêmica continuada para profissionais do serviço religioso, padre Raimundo acredita que as diferentes áreas do conhecimento precisam dialogar. "Nós precisamos dessa interdisciplinaridade. Precisamos desses vários mecanismos para nos ajudar no atendimento às pessoas que sofrem."

Adaptação

Em uma rotina intensa de preparação para o Enem, Raimundo fez cursinho pré-vestibular, se dedicando às aulas das 7h às 12h, das segundas às sextas-feiras, além de estudar mais quatro horas diárias sozinho. "Eu focava nas disciplinas que eu tinha mais dificuldade, que eram de exatas. Porque as disciplinas de humanas, como filosofia, literatura, história e geografia, a gente vê muito no seminário", explica.

Ele conta que fazia dez questões de exatas todos os dias e produzia duas redações por semana, além de treinar com simulados do cursinho todas as sextas-feiras. Raimundo ainda conciliava os estudos com as atividades na igreja onde atuava na época, Nossa Senhora das Candeias.

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Missa de domingo de ramos, na paróquia Nossa Senhora das Candeias (foto: Arquivo pessoal)

Segundo ele, se adaptar às exigências da prova foi seu maior desafio durante a preparação. "Eu voltei para a sala de aula e tive que aprender a fazer as questões, que mudaram bastante. Hoje, tem muita questão pegadinha. Se você não percebe o erro, não alcança êxito", descreve.

Agora, já estudante universitário, o pároco passa por uma nova fase de ajustes: foi morar em um alojamento católico e, aos fins de semana, celebra missas na paróquia da cidade. Teve que abdicar de outras funções administrativas na igreja, porque considera que seria impossível conciliar mais atividades com os estudos.

Raimundo diz que foi bem recebido na faculdade e acolhido tanto por estudantes como por professores e equipe pedagógica. Sua turma é diversificada, "tem desde jovens de 17 anos até pessoas da minha idade e mães". Ele comemora a convivência harmoniosa entre os alunos: "A gente precisa ter uma boa convivência porque precisa um do outro, a gente sempre tenta se ajudar".

Quando falou para sua turma que era padre, foi uma surpresa geral, "mas todo mundo me respeitou", lembra. Antes de se apresentar, porém, alguns colegas já desconfiavam. "Não tinha como eles não desconfiarem aos poucos, pela minha capacidade de apresentar as ideias", se diverte.

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Missa das crianças na paróquia Nossa Senhora das Candeias (foto: Arquivo pessoal)

Planos para o futuro

Para poder estudar, Raimundo assinou um documento fornecido pela Igreja Católica, mostrando como a formação de médico contribuiria para os serviços religiosos. Na Diocese de Teresina, onde estava vinculado, será inaugurada a Casa do Clero, uma moradia para sacerdotes mais velhos. No documento que apresentou à Diocese, o padre se comprometeu, após se formar, a prestar atendimento ao grupo e também participar de projetos sociais, entre eles, integrar uma equipe de médicos católicos, dialogando com os párocos para melhor atender suas necessidades.

O Piauí está entre os 15 com maior número de médicos por habitantes no país, com cerca de 2,34 profissionais para cada mil pessoas, segundo o estudo Demografia Médica no Brasil em 2023, realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e a Associação Médica Brasileira (AMB). No Nordeste, o estado é o terceiro com maior índice. Entre as capitais, Teresina ocupa a décima posição. Visando o polo médico da capital, Raimundo acredita que será possível "assistir nossos fiéis e ainda trabalhar na área da saúde".

Inspirado pelos casos que tratava na comunidade ORE, o sacerdote conta que deseja se especializar na área da psiquiatria: "Nesse momento, eu penso na neurologia ou na psiquiatria, para poder alavancar o meu projeto social lá na comunidade, onde a gente trabalha com questões de saúde mental". Apesar disso, está aberto a outras possibilidades, como ser médico da família, um ramo que considera também "muito interessante".

O padre acredita que é preciso se ter uma postura ativa em relação à vida, porque "um sonho não é só uma ideia, ele precisa se tornar realidade". Para ele, uma mudança de mentalidade é essencial para alcançar metas. "O meu recado para o povo do Brasil é que estudem. Vão em busca dos seus sonhos e concretize-os, para que eles possam lhe trazer a verdadeira felicidade", conclui.

Estagiária sob a supervisão de Priscila Crispi

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