Em 2023, o Brasil comemorou 20 anos da aprovação da Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de temáticas relacionadas à história e cultura afro-brasileira em todas as escolas do país, inaugurando o chamado letramento racial nas diretrizes e bases da educação nacional. A regulamentação possibilitou que todas as crianças brasileiras pudessem estudar, pela primeira vez, a história da África, a luta dos povos negros no Brasil e sua importância na formação social, cultural, econômica e política do país. A medida trouxe muitos avanços, porém, foi alvo de resistências e, após duas décadas, segue pouco implementada.
É o que conta ao Correio Renata Nogueira da Silva, doutora em antropologia social pela Universidade de Brasília e responsável pela formação de professores sobre conhecimentos afro-indígenas da Subsecretaria de Formação Continuada dos Profissionais da Educação do Governo do Distrito Federal, a EAPE. A educadora trabalha na EAPE há onze anos e conduz, desde 2022, dois cursos por ano, quando conversa com professores da rede sobre filosofia, arte e história de povos africanos e indígenas. Em sua visão, há uma lacuna desses conhecimentos na formação oferecida aos professores pelas universidades e ao longo da trajetória profissional, mas a principal barreira para que o tema ganhe seu devido lugar em currículos e corações é mesmo o racismo.
Professora, atualmente, como funcionam as formações voltadas ao letramento racial que são oferecidas pela Secretaria de Educação do DF para os professores que querem se capacitar no tema?
Essa é uma política que vem sendo implementada pelo DF há muitos anos e foi coordenada por diferentes colegas, no passado. Desde que passei a coordenar os cursos, com o professor Marcelo José, temos dois cursos oferecidos pela EAPE por ano, um por semestre. São cursos com carga horária de 90 horas, híbridos, que acontecem em um ambiente virtual e com atividades presenciais. No primeiro semestre deste ano, foquei a formação na apresentação de autores africanos que pudessem povoar o imaginário dos professores com outros referenciais desse continente, desmistificar seu olhar sobre esses povos, para que eles pudessem levar isso, depois, para a sala de aula — outras imagens da África para além da miséria e exploração, imagens de uma África que produz ciência, cultura, riqueza. Tudo isso é sempre contextualizado, ressaltando que esse conhecimento ganha contornos brasileiros. Não falamos de uma África pura, mas daquilo que nos orientou como formação do povo brasileiro. Seguindo a ideia de apresentar intelectuais de outros universos, trouxe também autores indígenas. Mostrei quadrinhos, rap, música sertaneja, tudo feito por pessoas indígenas, para divulgar essa produção artística e acadêmica plural. No segundo semestre, o curso focou na produção de materiais didáticos de múltiplas linguagens, que pudessem ser utilizados pelos professores para trabalhar esse conteúdo em sala de aula com as crianças e adolescentes.
Você acredita que esse conhecimento é uma lacuna na formação dos professores brasileiros?
Já avançamos bastante desde a Lei 10.639, mas, sim, há uma lacuna na formação inicial dos professores e também na continuada. Há material, mas falta referencial teórico. Observamos que há uma distância grande entre o que se aprende na faculdade, o que os materiais trazem e a realidade do que está acontecendo ali, em sala de aula. Existem duas formas de tratar essa temática. A primeira é uma pedagogia de eventos, que eu costumo brincar que é o currículo turista, quando você faz um turismo pelas minorias simbólicas do país. Você fala de negros no Dia da Consciência Negra, fala de indígenas no Dia dos Povos Indígenas e de mulheres no Dia Internacional da Mulher. O problema dessa abordagem é que ela acaba reforçando estereótipos, porque não trabalha com profundidade os conteúdos. Precisamos trabalhar com uma abordagem de currículo. Não adianta anunciar o racismo, é preciso criar práticas antirracistas. Não adianta ter material ou até uma sequência didática, é preciso ter uma mudança na perspectiva dos professores.
E como tem sido a repercussão dos cursos?
O retorno dos colegas é, eu acredito, o resultado mais bonito. No semestre passado, eu trabalhei com a interpretação e análise de filmes do continente africano. A ideia de trabalhar com isso era para que tivéssemos uma aproximação das paisagens, corpos, cenários e linguagens do continente africano produzidas por diretores africanos, por eles próprios. Assistimos vários filmes de Nollywood, a indústria de cinema da Nigéria. E a forma como os colegas usaram esses filmes para trabalhar com as crianças foi bem interessante assim. Teve o caso do filme Amina, que é um filme para uma uma faixa etária maior, de 12, 14 anos, mas que uma professora usou na educação infantil. Ela traduziu o filme numa linguagem acessível às crianças e depois trabalhou com a ideia de rainhas, a importância que as rainhas tiveram no continente africano, a importância das mulheres. Outra situação foi com o filme Cavaleiro do rei, que trata de uma situação da segunda guerra mundial, como a guerra foi interpretada pelo continente africano. Alguns colegas de história pegaram esse trechos e também usaram para trabalhar a questão da segunda guerra mundial dentro dos seus planos de aula. Trabalhei, ainda, com uma dinâmica mostrando a importância de objetos de memória em relação à questão da ancestralidade e oralidade, que são valores civilizatórios para o brasileiro. Os professores também levaram isso para as crianças e os adolescentes, elas tiveram que contar sua história, dos avós, dos pais… Ou seja, ao acessar esse repertório, os professores também levaram para sala de aula esses conhecimentos.
Quais resultados podem ser medidos do impacto dessa formação?
Nesse segundo semestre, como já foi um curso mais voltado para a produção de material didático, tivemos materiais fantásticos! Um jogo de tabuleiro em formato circular, fazendo alusão à importância da circularidade para as culturas afro-brasileiras, fichas, que viraram quebra-cabeças das etnias indígenas aqui do Distrito Federal, um jogo da memória com símbolos de povos de Gana, um material, que foi feito para o ensino médio, que traz informações sobre política e economia africanas de uma forma lúdica, um dominó com símbolos adinkras, e um jogo que foi criado por eles, chamado "Quem é quem nesse terreiro", que traz informações de várias personalidades brasileiras negras, de vários momentos da história do, desde Zumbi dos Palmares e Dandara até Marielle e Silvio Almeida. Esse material foi produzido pensando na realidade do Distrito Federal, por profissionais de diferentes componentes curriculares, diferentes regionais, visando a possibilidade de adequação para diferentes idades. Nossa ideia é transformar isso num caderno pedagógico e disponibilizar para rede com o passo a passo de como foi feito. Eu acredito que a gente tem pelo menos 10 materiais que foram produzidos e isso eu acredito que é a grande contribuição do curso para rede.
Um material feito numa perspectiva anti-racista, tomando como referência os conhecimentos dos profissionais da educação daqui. E foi muito divertido quando a gente experimentou porque a ideia era que os colegas experimentassem os trabalhos uns dos outros, porque uma das coisas que eu sempre tento trazer para o curso é como combinar a forma e conteúdo. Então, se o conteúdo era trabalhar uma perspectiva de bem viver, de acordo com as filosofias indígenas e africanas, como que o curso também pode se tornar um espaço de bem viver? Como a gente modifica a conjuntura e a organização espacial da sala promovendo outras formas de sociabilidade e que também produzem conhecimento, né? Não só o texto escrito, não só a organização da sala como a gente está acostumado são válidos, mas a oralidade, a contação de história, a brincadeira, a dança, a experiência com os elementos da natureza, tudo isso é produção de conhecimento e é pedagógico. Se os colegas experimentarem isso, a possibilidade deles levarem para a sala de aula é muito maior.