Discutir metas de redução de emissão de gases do efeito estufa e formas de atingir neutralidade na emissão de carbono — dois temas principais da Conferência do Clima da ONU que acontece em Dubai (COP28) — sem considerar questões etnicorraciais e convocar, para as negociações, os mais atingidos pelas mudanças climáticas é, no mínimo, injusto, avalia Maria José Pacheco. "A maioria dos grupo de negros, indígenas e mulheres está fora de qualquer tipo de influência direta nesse processo de definição dos temas (...) Isso ainda é uma perspectiva muito limitada da democracia", explica. Zezé e outras integrantes da Rede Vozes Negras pelo Clima foram à conferência para defender essa perspectiva. Às vésperas do encerramento do encontro, a ativista falou à coluna sobre a experiência.
Como o tema racismo ambiental tem sido recebido na conferência do clima?
De certa forma, a gente percebe que, nas discussões do Pavilhão Brasil, estão se multiplicando as questões socioambientais, sobre racismo ambiental e gênero, e nós nos sentimos acolhidas nesse debate geral. A gente também fez incidência com vários órgãos do Brasil, o Ministério da Fazenda, do Meio Ambiente, da Igualdade Racial. Então, é uma oportunidade de estar perto de todos esses órgãos, e a gente sentiu um acolhimento. Estamos com bastante expectativa de que se abram caminhos, discussões, e que a gente amplie as políticas públicas ligadas ao clima e às desigualdades. No entanto, o que a gente percebe é que, no âmbito das negociações, há uma dificuldade. Temos tido briefings com o Ministério das Relações Exteriores e há uma dificuldade em simplesmente mencionar os povos afrodescendentes como parte do impacto do clima e nos objetivos, no documento geral da ONU. A gente também percebe que sequer são citadas as questões a partir de uma perspectiva etnicorracial. Também há dificuldades em tratar as questões de gênero à altura da participação das mulheres, em discutir a habitação e também os fundos e recursos para que se invista nas mulheres, que são as que têm mais relação com a natureza, principalmente as negras, as que mais sofrem com os impactos e as que menos participam dos processos de decisão e definição.
Como avalia as discussões travadas?
A nossa expectativa era de que a sociedade civil participasse de forma mais contundente nos processos das negociações, mas, de certa forma, a sociedade civil fica alijada, são poucos os grupos que conseguem entrar nessa coisa da observação. A maioria dos grupo de negros, indígenas e mulheres está fora de qualquer tipo de influência direta nesse processo de definição dos temas. Então, a gente acha que isso ainda é uma perspectiva muito limitada da democracia e da participação efetiva desses grupos mais vulnerabilizados e que são os mais impactados pela mudança climática em todo o mundo, especialmente no Brasil. Nós, da Rede Vozes Negras pelo Clima, uma articulação de mulheres negras com apoio da Anistia Internacional, nos preparamos, todo este ano, para participar da COP e trouxemos um documento, um relatório, que conecta as situações de vulnerabilidades, injustiças socioambientais, racismo ambiental, com esse debate das mudanças climáticas. Fizemos incidências, entregamos aos vários ministérios, a várias autoridades nacionais e internacionais. Também fizemos uma carta ligada a essas nossas pautas e discussões em um dia em que tivemos uma mesa específica da nossa rede.
Vocês sairão com algum produto final, com novos encontros agendados?
A nossa expectativa é de que todas essas pautas entregues se concretizem em pautas concretas, encaminhamentos de políticas no nível nacional e internacional, e também nas relações laterais que a gente tem feito com outros países, principalmente os da América Latina e da África. Nossa expectativa é de que a gente possa voltar no territórios e que essa participação aqui na COP potencialize as nossas lutas, e que a gente também possa se articular enquanto sociedade civil para influenciar e nos prepararmos bastante para as próximas COPs, mas principalmente para a COP30, em Belém, porque lá a gente deve fazer com que o governo tenha uma atuação muito mais forte e contundente, com que a sociedade civil tenha o maior nível de participação, e com que a gente também mostre para o mundo como é que se trata de democracia, de participação social. Que a gente também, de lá, tire avanços bastante concretos.
Por que essa temática é tão importante para o Brasil?
Acho que o governo brasileiro ainda não tenha profundamente, talvez não queira, enxergado essa questão do racismo ambiental no Brasil. A gente começa a ver alguns setores absorverem e, um pouco, recepcionarem esses nossos debates, mas esse é um debate no governo brasileiro extremamente incipiente. O debate climático no Brasil ainda está muito pautado pela visão mais geral do movimento ambientalista, que olha para o clima de uma forma universalizada. No entanto, a gente precisa tratar das questões que têm a ver com equidade, com interseccionalidades. Sem a gente tratar desiguais de forma desigual para poder chegar à igualdade, nunca vamos corrigir essas coisas, nunca vamos corrigir essas desigualdades. No Brasil, nós temos a realidade dos territórios, das comunidades quilombolas, dos povos indígenas, das mulheres negras, das comunidades urbanas periféricas. Essas pessoas contribuem minimamente com o contingente do impacto para a mudança climática, mas as consequências das tragédias, dos eventos extremos, das mudanças climáticas, seja no sertão, no litoral, nas comunidades em torno dos rios, são muito mais fortes para elas. E, de certa forma também, o modelo de desenvolvimento, as decisões sobre quais empreendimentos vão acontecer, tudo isso impacta sem levar em consideração, muitas vezes, esses territórios. Os locais dessas comunidades são considerados zonas de sacrifício.
Também nas soluções que têm sido adotadas mais recentemente?
A gente percebe que, agora, quando tem todo o discurso sobre transição justa de energia, sobre mudança da matriz energética, se não for discutido com essas comunidades, com os territórios e as especificidade delas, vão estar fazendo injustiça, colonialismo, violência, racismo, principalmente racismo ambiental. Isso porque, por exemplo, os parques eólicos em larga escala destroem território, afugentam aves, destroem mananciais de água, compactam dunas, afastam peixes, expulsam comunidades do seu território. Se for nesse modelo, essa transição não é a contento. Se a gente tiver parques solares que desmatam mata nativa, não funciona. Tem que ser de forma descentralizada, justa, equitativa e inclusiva.
Vocês saem esperançosas?
Então, de certa forma, a gente tem uma frustração e espera que, nos próximos períodos, a gente avance de forma mais contundente, mais participativa, nesse processo das mudanças climáticas. Essa discussão das mudanças climáticas ainda não está à altura de conseguir salvar a vida no planeta para os próximos anos em um período muito curto.