Inspiração

Goiano de 90 anos cursa medicina e é homenageado pela faculdade

Valdomiro de Sousa superou dificuldades financeiras e um AVC para realizar seu sonho de infância: ser médico. Neste mês, receberá homenagem de láurea acadêmica pelo Centro Universitário Alfredo Nasser

Priscila Crispi
postado em 12/11/2023 06:00 / atualizado em 12/11/2023 06:00
Aos 90 anos, Valdomiro de Sousa cursa o oitavo período de medicina. A faculdade decidiu homenagear seu esforço em cerimônia de láurea acadêmica -  (crédito: Fábio Lima/O Popular)
Aos 90 anos, Valdomiro de Sousa cursa o oitavo período de medicina. A faculdade decidiu homenagear seu esforço em cerimônia de láurea acadêmica - (crédito: Fábio Lima/O Popular)
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Depois de uma longa trajetória de esforços bem-sucedidos, nada de pendurar as chuteiras e viver só de lembranças. Valdomiro de Sousa enche seus dias com trabalho, estudo e comemorações. Ele está prestes a completar 90 anos e, no mesmo dia, vai ser homenageado com uma láurea acadêmica pela universidade onde cursa medicina, o Centro Universitário
Alfredo Nasser (Unifan).

O coordenador do departamento, Marinaldo Soares Leite, conta que o aluno do oitavo período estaria se formando neste semestre, caso não tivesse trancado o curso em decorrência de um problema de saúde. "Ele queria tanto essa formatura, que decidimos realizar essa cerimônia no dia do aniversário dele, como uma forma de reconhecer seu esforço e desempenho", diz o médico.

"É uma honra para mim porque não tem ninguém no mundo que tem uma história como a minha, nem se você procurar na China, no Japão", brinca Valdomiro.

A data, 16 de novembro, merece celebração especial: a cerimônia acontece no ano em que o empresário se recupera de um acidente vascular cerebral (AVC), ocorrido em fevereiro. Para isso, Valdomiro decidiu reunir todos os amigos e familiares numa churrascaria de Goiânia, cidade onde vive e construiu uma carreira inusitada.

Valdomiro em sua fazenda em Querência (MT). A propriedade de 10 mil alqueires está arrendada para plantação de soja
Valdomiro em sua fazenda em Querência (MT). A propriedade de 10 mil alqueires está arrendada para plantação de soja (foto: Arquivo pessoal)

Nascido em Caldas Novas e criado em Cristianópolis, chegou à capital do estado de Goiás aos 16 anos. Trabalhou por um tempo como ajudante de pedreiro com o pai, que era mestre de obras, o que custeou os estudos em ciências contábeis. Como contador, conseguiu um emprego em um frigorífico, onde fez longa carreira.

A primeira graduação abriu sua cabeça e várias portas: foi comprando cotas dos acionistas e chegou a ser dono do negócio. "Abri uma firma com uns 20 anos, foi então que consegui melhorar minha condição de vida. Nessa época não tinha carro, fazia tudo de bicicleta. Sofri demais, porém venci", lembra.

Mas Valdomiro ainda nutria um sonho, o de ser médico. Foi para o Rio de Janeiro com alguns primos para tentar ingressar em uma faculdade de medicina. Um dos primos foi aprovado, e ele não. Apesar da frustração, de volta à Goiânia, os negócios foram dando cada vez mais certo. Ele e os sócios descobriram uma jazida de nióbio na fazenda do frigorífico, o que lhe rendeu, mais tarde, a compra de uma propriedade de 10 mil alqueires, em Querência (MT), hoje arrendada para a produção de soja.

No meio do caminho, conheceu e se casou com Anísia Gasparina, empregada doméstica de Taguatinga e finalista do concurso Miss Brasil de 1960, representando Brasília. Com ela, teve a filha Karyna de Sousa, que mais tarde se tornaria seu braço direito nos negócios. "Fui o filho homem que ele não teve. Sempre trabalhamos juntos, sou vice-presidente do grupo e sua parceira de vida. Mas ele ainda é o controle e a decisão dos negócios", diz Karyna, advogada, de 48 anos.

Mesmo gerenciando várias empresas, a filha diz que Valdomiro sempre esteve presente: "Ele é o melhor pai do mundo, e agora, o melhor avô do mundo para meus três filhos, Miguel, Catarina e Fernando."

Vida acadêmica

Futuro médico posa com os três netos e as duas filhas, Karyna e Caroline
Futuro médico posa com os três netos e as duas filhas, Karyna e Caroline (foto: Arquivo pessoal)

Mesmo após se consolidar como grande empresário e até transitar no meio político, apadrinhado pelo primo Iris Rezende Machado, ex-governador de Goiás, Valdomiro queria mais. Aos 70 anos, resolveu cursar direito e dividiu os corredores da faculdade com a filha Karyna. "Todos os dias, ele ia me buscar na minha sala, no intervalo, para gente merendar juntos", conta ela.

"Ele foi um divisor de águas na universidade. Era um aluno excepcional, não só pela idade, mas pela dedicação. Sentava sempre na primeira carteira da sala", diz Laudelina Inácio da Silva, coordenadora da Universidade Paulista de Goiânia, onde Valdomiro se graduou advogado.

A professora comenta que ficou muito feliz ao saber que o aluno estava concluindo mais uma graduação na terceira idade. "Nunca imaginei que ele fosse procurar outra profissão, porque era muito apaixonado pelo direito, mas não acho que a medicina seja incompatível com suas escolhas até aqui, o conhecimento é sempre cumulativo", afirma.

E não foi só a professora que o empresário espantou, a graduação em medicina também pegou a família de surpresa. A filha mais nova, Caroline de Sousa, 35 anos, é médica cardiologista e conta que Valdomiro estudou para o vestibular por anos em segredo e só contou às filhas sobre seus planos quando foi aprovado.

"Ficamos assustados com a notícia de que ele queria fazer esse curso, com essa idade. Eu conheço a rotina e sei que é muito pesada, como seria conciliar os estudos com tanta coisa que ele já faz?", lembra Caroline. "Mas fiquei orgulhosa. Para todo mundo que conto isso, as pessoas ficam maravilhadas, é uma lição de vida, uma inspiração", completa.

Valdomiro com a filha Karyne, quando criança, que mais tarde se tornaria seu braço direito nos negócios
O empresário com a filha Karyne, quando criança, que mais tarde se tornaria seu braço direito nos negócios (foto: Arquivo pessoal)

E o pai não só começou o curso, como foi até o fim, enfrentando, no meio do caminho, o AVC que lhe deixou com sequelas na fala e nos movimentos. "Deus me deu a felicidade de sobreviver, quase morri, mas agora estou bem, melhorando a cada dia", comemora Valdomiro.

Ana Rita de Faria trabalha como cuidadora de Valdomiro e conta que, após receber alta, ele voltou para casa usando sonda e traqueostomia, substituídas, depois, por uma válvula no estômago. "Sua recuperação foi muito rápida: entre fevereiro e junho, ele passou pelos três processos. Desde o começo, sempre lúcido, ativo, independente", comenta.

Valdomiro ficou apenas um mês sem ir à faculdade durante o período de recuperação. Hoje, dedica-se à fisioterapia e fonoaudiologia todos os dias — quer estar bem para terminar o curso, abrir dois consultórios médicos e clinicar.

"Se depender da força de vontade, ele ainda vai trabalhar como médico, eu não duvido dele, ele é imbatível", aposta Luiz Eduardo Silva, 33, colega de faculdade do empresário na Unifan. "No dia da morte da rainha Elizabeth, ele me ligou e disse: ela foi e eu fiquei, hein? Estou vencendo", lembra o estudante, rindo.

Luiz diz que os alunos adoravam ouvir o colega, sempre calmo e elegante. "Ele conseguia acompanhar todas as matérias porque já tem seu método de estudo, estudou muitas coisas. Medicina é aquele dom que a gente já nasce com ele, e o sonho nunca morre. Seu Valdomiro despertou esse sonho quando pôde, na velhice e não na juventude, porque é um curso muito caro", pondera.

Vitalidade

Valdomiro impressiona não só pelas conquistas, mas pela energia aos 90 anos de idade. "Ele anda só, sobe escada sozinho, faz fisio dentro da piscina, come normal… E mora só! Somos três cuidadores, além dos profissionais da casa e do escritório, mas ele comanda tudo, todos os bens que tem, ele quem gerencia", explica a cuidadora Ana Rita.

O idoso diz que o conhecimento é o que o mantém vivo: "Outros velhos param no asilo e se acomodam lá, eu, se for parar num asilo, vou mandar prender os funcionários", brinca. A cabeça ativa é um dos segredos da longevidade, mas Valdomiro completa o conselho: "faça longas caminhadas para viver bem. Uma vida sem remédio, só com caminhada."

Ana Rita acrescenta a gentileza à lista: "ele é um homem de uma inteligência raríssima, mas simples, trata a gente super bem, é alegre. Na faculdade, toparam fazer a cerimônia de homenagem no dia 16 só porque ele disse que queria que caísse no seu aniversário. Ele é muito mimado porque é um encanto."

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