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BRASILEIROS NO TOPO DO MUNDO

Humildade e ética, as receitas do chef brasiliense

Chef brasiliense, Leonardo Galvão faz sucesso em Portugal no comando da cozinha de um badalado restaurante italiano

Lisboa — O brasiliense Leonardo Galvão, 32 anos, fala com emoção dos tempos de menino na modesta, mas acolhedora casa em que ele viveu em Planaltina. Ele podia estar em qualquer brincadeira de rua, mas, quando a mãe, dona Telma, uma salgadeira de mão cheia, entrava na cozinha para preparar as encomendas da semana, nada mais o prendia naquela coisa de criança. Com os pés sujos da poeria vermelha característica do Planalto Central, tratava de puxar a cadeira para se sentar e acompanhar todos os movimentos da mulher. Não tinha a menor noção do porquê de tanto interesse em ver a mãe cozinhando. Era como se entrasse num mundo mágico, cheio de odores e sabores. Ninguém se atrevia a tirá-lo daquele ambiente até que ela acabasse de fazer tudo e ele provasse um por um dos quitutes. Raspava, sem constrangimento, as panelas e as bacias usadas no preparo dos salgados e dos bolos.

Com o tempo e a percepção clara de como dona Telma separava os ingredientes, ele passou a ajudá-la nesse processo. A química entre os dois era tamanha, que a mãe, apesar de todo trabalho por realizar, dispensava parte do tempo para explicar ao garoto as receitas que estava produzindo e, claro, revelar um dos segredos de seu sucesso. Leonardo foi guardando aquilo na memória. Quem sabe um dia ele próprio prepararia a comida de casa, se, por alguma eventualidade, a dona da residência não pudesse fazê-lo. Dona Telma achava graça no interesse do menino por aquela cozinha, de onde vinha boa parte do sustento da família. Ela chegou a trabalhar como servidora pública, porém, abriu mão da carreira para cuidar dos filhos, Leonardo e mais duas meninas. Para não faltar nada a eles, passou a cozinhar para fora a fim de ajudar o marido, o motorista de caminhão José Mauro, a abastecer a despensa.

Leonardo, sempre muito curioso, transitando entre a casa dos pais e a residência dos avós, na 409 Sul, cresceu e se ocupou de outras descobertas que a vida lhe proporcionava. Já não havia mais tempo para acompanhar a mãe nos afazeres dela. Aos 18 anos, entrou para a faculdade de engenharia civil. Porém, depois de três períodos de estudos, trancou a matrícula e, pelo alistamento obrigatório, acabou indo para a Força Aérea Brasileira (FAB). Via, ali, uma oportunidade de ganhar o próprio dinheiro. De soldado, chegou a terceiro sargento. Foram oito anos seguidos na carreira militar. Nos últimos dois anos de farda, no entanto, começou a sentir falta de algo que o motivasse e lhe desse um diploma. Pensou, pensou, e os tempos de menino, na cozinha de dona Telma falaram alto. Ele se matriculou, então, num curso de gastronomia do Iesb.

"Como estava dividido entre a FAB e a faculdade, não consegui me dedicar como eu queria aos estudos, mas me formei em 2017, quando também encerrei a minha carreira militar", diz o rapaz. Inquieto, não sabia muito bem em que direção seguir. Aos poucos, depois de muitos questionamentos, começou a botar os pés no chão. Foi uma namorada que ele tinha à época que lhe mostrou o caminho: Portugal. Ela já estava vivendo do outro lado do Atlântico e foi convencendo o jovem de que valia a pena arriscar na mudança de país. Leonardo conversou com os pais, que o incentivaram a ousar. Ele vendeu tudo o que tinha em Brasília e comprou a passagem para o mundo novo que decidiu desbravar. Em janeiro de 2018, partiu para a terra de Cabral. Sabia que, se nada desse certo, teria o aconchego da família para se reconstruir e descobrir outros horizontes.

Diploma na mão

Arquivo pessoal - No dia da formatura, em julho de 2017, na faculdade de gastronomia do Iesb, com a mãe e irmãs

A chegada, com apenas duas malas, a Lisboa foi impactante. Logo de cara, teve a certeza de que ali era o seu lugar. Apenas 12 dias depois de aportar na capital portuguesa, com o diploma de gastronomia nas mãos, conseguiu emprego em uma cozinha de um hotel. Se o trabalho estava indo muito bem, o relacionamento com a namorada que o havia incentivado a se mudar para solo lusitano não atingiu o tom adequado e, dois meses depois, veio a separação. Leonardo continuou trabalhando e vendo muitas oportunidades se abrindo para ele. Um problema sério limitava os passos dele: a falta da documentação adequada para permanecer e ter um emprego formal em Portugal. A autorização de residência só veio um ano e três meses depois. Foi um alívio. E uma forma de voar mais alto. "Tudo ficou mais fácil", afirma.

Na legalidade, Leonardo contactou um estabelecimento em que ele já havia se candidatado a uma vaga, mas foi recusado por não ter a autorização de residência. Quando disse que toda a burocracia havia sido superada, em uma semana, já estava contratado. Infelizmente, não foi o que esperava. Mas, por sorte, pelas relações que ele havia construído desde que chegou ao país europeu, uma nova porta se abriu. O gerente do hotel que lhe estendeu a mão logo nos primeiros dias de Portugal tinha sido convidado para tocar um restaurante e precisava de um cozinheiro. Convidado, o brasiliense não pensou duas vezes. Abraçou com tudo a oportunidade. "Era novembro de 2019. Estava muito entusiasmado", lembra.

A negociação para o novo emprego envolveu uma condição: que ele pudesse viajar para o Brasil em março de 2020. "Já tinha comprado a passagem, pois tiraria férias do emprego anterior", conta. A previsão era de que ficaria 22 dias com a família. Mas, dias depois de pousar no Brasil, veio a pandemia do novo coronavírus. O mundo parou. Leonardo só retornou a Lisboa quase três meses depois. Estavam todos abalados com aquele fato até então desconhecido e assustador. O rapaz, com toda a equipe do restaurante, arregaçou as mangas e assumiu a cozinha cheio de disposição. Era preciso recuperar o tempo em que o estabelecimento ficou fechado. Os pratos preparados pelo chef trouxeram os resultados esperados. "Foi um período desafiador", reconhece.

Em abril de 2021, Leonardo fez uma nova viagem para o Brasil. Era grande a saudade de dona Telma, do pai José Mauro e das duas irmãs. "Sou muito apegado a minha família", ressalta. Novamente, o mundo se viu diante de uma outra onda de covid, muito mais forte. Todos os governos fecharam a economia para tentar conter a doença. O período de permanência dele em solo brasileiro foi maior do que o previsto. Quando retornou a Portugal, o brasiliense foi informado de que não mais comandaria a cozinha do restaurante. Mas permaneceria contratado. E assim foi.

Soco no estômago

Arquivo pessoal - Leonardo entre o pai e a mãe. O chef integrou a FAB por oito anos

Meses depois, Leonardo soube de uma notícia que o abalaria profundamente: uma de suas irmãs, Andressa, tinha sido diagnosticada com leucemia. Ela acabou morrendo aos 26 anos, em fevereiro de 2022. "Felizmente, a pandemia me permitiu conviver por mais tempo com ela. Isso foi um conforto para mim", diz. O chef, que tem tatuado no braço, em inglês, o lema "cozinhar é uma forma de amar as pessoas", se apegou o quanto pôde à profissão para se manter de pé. E o retorno veio logo.

Ele foi convidado para chefiar a cozinha de um restaurante italiano que abriria as portas em breve na capital portuguesa — o Salloto Divino, encravado no bairro de São Bento, bem próximo da Assembleia da República, onde se decidem as leis em Portugal. A expectativa era de que a nova casa funcionasse a partir de janeiro deste ano, mas as obras se estenderam além do previsto e o atendimento ao público só ocorreu de junho em diante.

Leonardo preparou todo o cardápio, que tem surpreendido a clientela. Apesar de ser um restaurante italiano, o foco não está nas massas nem nas pizzas. O brasiliense optou por oferecer uma viagem pela culinária da Itália, com pratos de cada uma das regiões daquele país. E deu certo. Além da escolha minuciosa da comida — foram meses de pesquisas —, ele acredita que muito do sucesso da casa se deve à forma como tudo é preparado, bem ao estilo da cozinha de dona Telma. "Fazemos tudo com muito respeito. As pessoas que chegam ao restaurante confiam que entregaremos algo de qualidade. Não podemos falhar", ensina.

Sonhos e desafios

Arquivo pessoal - Leonardo Galvão posa com uniforme da Força Aérea Brasileira

Os olhos do chef brilham como os do menino que via a mãe envolvida com as panelas naquela cozinha de Planaltina, sempre procurando entregar o melhor para a clientela. Leonardo, por sinal, quando está preparando algo novo para o cardápio, discute tudo com dona Telma. "As sugestões dela são sempre muito bem-vindas." Os dois fazem disputas para ver quem prepara o melhor prato. "Convidamos amigos para provar, e eles dão notas. Minha mãe, inclusive, tem preparado os pratos dela como se fosse servi-los em um bom restaurante", frisa. "Tudo isso é mais aprendizado para mim", reforça.

Sonhos não faltam ao brasiliense. Se hoje comanda uma grande cozinha de um badalado restaurante em Lisboa, ele traça planos para ter o próprio estabelecimento. A ideia é seguir o mesmo roteiro italiano, mas com comida brasileira, de todas as regiões do país. Caso um dia retorne a Brasília, e a opção seja por tocar um negócio na cidade em que nasceu, o restaurante será de quitutes portugueses. "Mas que fique claro: não há a menor possibilidade de eu retornar ao Brasil para morar. Não por agora. Tenho muito o que aprender em Portugal, onde pessoas maravilhosas têm me dado oportunidades para eu mostrar meu talento", enfatiza.

São pessoas que, no entender dele, estão lhe empurrando para frente. Não à toa, Leonardo vem sendo procurado por alguns dos mais badalados chefs de cozinha do Brasil e de Portugal para a troca de experiências. "Saímos para conversar, tomamos cerveja juntos, falamos da profissão e dos desafios que temos. Em Brasília, não teria tais oportunidades", acredita. De uma coisa o brasiliense tem certeza: tudo de bom que está lhe acontecendo é resultado da formação que recebeu em casa, dos pais, que lhe ensinaram a ser humilde e honesto. "São valores que trago do berço e que replico no meu trabalho", afirma.