Eu, Estudante

BRASILEIROS NO TOPO DO MUNDO

O empreendedor do cacau que sonha conquistar o planeta

O brasileiro Marco Lessa leva a segunda edição do Chocolat Festival ao Porto e mira o mercado europeu, o Oriente Médio e a Ásia. Antes de cruzar o Atlântico, o evento aporta em Brasília

Lisboa — Se tem uma coisa da qual o baiano Marco Lessa, 53 anos, não se arrepende é de não ter sido doutor. Desde pequeno, em Guanambi, no sertão da Bahia, onde nasceu, a mãe, professora, e o pai, bancário, lhe diziam que o futuro só estaria garantido se ele fosse advogado ou médico. Não que ele tivesse algum problema com tais profissões, que são admiráveis, mas era questão de aptidão. E isso foi ficando muito claro à medida que ele se aproximava da fase adulta. "Naquela época, era o sonho de todos os pais terem um filho médico ou advogado, mas não aconteceu comigo", diz. Lessa tinha a certeza de que havia uma avenida de oportunidades à espera dele.

Ainda na adolescência, os ventos do destino o levaram para o local que marcaria sua vida para sempre. O pai foi transferido para Ilhéus, que enfrentava um período de decadência por causa de uma praga, a vassoura de bruxa, que havia devastado a plantação de cacau na região. No auge da produção do fruto, que é a principal matéria-prima do chocolate, a cidade chegou a responder por mais de 60% dos impostos arrecadados pelo estado. A pujança era tamanha, que, só com os tributos oriundos da produção cacaueira, o governo baiano pagava toda a folha do funcionalismo público local. Mas esse tema pouco interessava ao jovem.

Fotos: Arquivo pessoal - Marco Lessa, na feira de chocolate do Porto, Portugal, em 2021

O garoto, que havia passado um tempo na capital Salvador, fez o primeiro vestibular em Ilhéus, precisamente para administração de empresas. Apesar de ter sido aprovado, decidiu também concorrer a uma vaga para o curso de arquitetura. Afinal, vários amigos diziam que aquele era o caminho para que ele exercitasse toda a criatividade que tinha. "Passei na primeira fase, no teste de aptidão, mas não dei continuidade", conta. Muito do entusiasmo que Lessa demonstrava tinha a ver com a sua paixão por gincanas. As disputas e as missões impostas o desafiavam enormemente. E seriam fundamentais para o que a vida lhe reservava.

 “Gincana é algo sagrado, deveria ser uma atividade obrigatória nas escolas. Consegue-se dialogar com união, envolve compromissos, desafios, equipes, comemorar ganhos e superar perdas. Faz toda a diferença para o futuro”, afirma o baiano. E o futuro começava a se escancarar para aquele rapaz curioso.

Renascer foi a virada

Arquivo Pessoal - Marco Lessa (à direita), empreendedor, com Pedro Araújo (ao centro), chocolatier português, e Alê Costa, CEO da Cacau Show, no Chocolat Festival Portugal em 2022.

Ainda estudante, veio a oportunidade de Lessa conhecer Gramado, no Rio Grande do Sul, vista como a terra do chocolate no Brasil. "Fui participar do Festival Mundial de Publicidade. Lá consegui experimentar o ecossistema que gira no entorno do chocolate. Havia boas iniciativas nessa área", ressalta. Nesse mesmo período, aos 21 anos, um amigo lhe convidou para produzir um show do Olodum. E deu certo. Veio um evento de camisas, e também foi um sucesso. E, para seu espanto, surgiu o convite que, definitivamente, mudaria sua vida para sempre: a produção da novela Renascer, da Rede Globo, que, ressalte-se, será regravada. "Foi uma grande escola, em todos os sentidos", frisa.

Arquivo Pessoal - Marco Lessa, empreendedor, durante as gravações da novela Renascer, em Ilhéus, em 1992.

Com essa experiência, Lessa despertou para a região que ele morava, totalmente destruída. Com a cidade sob o impacto da praga vassoura de bruxa, a produção de cacau no Brasil havia caído de 400 mil toneladas por ano para 90 mil. O país, que havia sido líder mundial na oferta do fruto, lutava para recuperar o espaço perdido. "Foi um momento terrível para Ilhéus", lamenta. Mas, em meio à pobreza e à decadência, ele percebeu uma riqueza histórica e arquitetônica e uma beleza natural fora do comum. "Me chamou a atenção, também, a questão ambiental, pois a produção de cacau se dava no meio de florestas", complementa.

A vida seguiu. E Lessa tocou sua empresa de publicidade e de eventos. Contudo, lhe incomodava demais o definhamento da região. "Só se falava em dívidas. As pessoas diziam, frequentemente, isso aqui já era, isso aqui já foi. Ficava bastante triste", assinala. A frequência com que começou a ir para Gramado despertou nele o ímpeto de fomentar o turismo em Ilhéus em torno do cacau. Foram várias as iniciativas. Surgiu, então, a ideia de visitar as fábricas de chocolate na cidade gaúcha. "Pensei: por que nós, que produzimos a matéria-prima para o chocolate, estávamos vivendo tudo aquilo? Era uma inquietação muito particular".

Arquivo Pessoal - Marco Lessa, empreendedor do cacau, no Chocolat Festival da Bahia em 2018.

Nesse processo de buscas por soluções, se deu conta de que a maioria das lojas de chocolates pelo mundo nada tem a ver diretamente com o cacau. "Elas derretem o chocolate produzido por grandes companhias e reformatam e vendem como chocolate caseiro, artesanal", conta. Convenceu-se de que precisava criar um evento que pudesse estimular a verticalização, favorecendo o produto de cacau e associando Ilhéus ao chocolate. "A meta era estimular o surgimento de empreendedores. Mas surgiu um problema: como fazer um evento sem chocolate? De 10 pessoas que eu abordava, 10 diziam para eu não fazer nada."

Turismo e gastronomia

Quatorze anos depois, Lessa só tem o que comemorar. Da primeira edição, em 2009, em que seis dos 13 estandes estavam vazios e sete haviam sido doados, o Chocolat Festival atravessou fronteiras, não apenas as de Ilhéus, as da Bahia, com mais de 1,2 milhão de participantes. O evento terá a sua segunda edição no Porto, em Portugal, em outubro próximo. No mesmo mês, passará por Bruxelas, na Bélgica, e por Paris, na França. Antes, entre 20 e 24 de setembro, aportará em Brasília. O que mais estimula o empresário e fundador da marca são os frutos originários do festival: mais de 300 empreendedores conseguiram fixar suas marcas de chocolate, gerando empregos e renda. Mais: criouse uma cadeia que envolve turismo, gastronomia e ecologia.

Outro ponto interessante foi o retorno para a região de Ilhéus, de filhos de produtores de cacau que haviam se desiludido com a crise enfrentada pelo setor e foram estudar e tentar a sorte em outros lugares. Muitos, hoje, são referências em tudo o que está relacionado ao fruto. O modelo de negócios, por sinal, foi replicado no Pará. Medicilândia, próxima de Altamira, na região do Xingu, é o principal produtor de cacau do Brasil. “Hoje, há cerca de 90 mil produtores em todo o país. Vemos transformações importantes na vida deles. Tem gente que não quer mais sair das áreas produtivas, são os empreendedores do cacau”, afirma.

Como um gincanista inveterado, Lessa, que vive em Braga, a mais brasileira das cidades de Portugal, já se deu várias outras missões. Uma delas, mostrar ao mundo que o cacau é símbolo de sustentabilidade. Para produzir o fruto é preciso manter a floresta de pé. “Há, ainda, os subprodutos do cacau, como a amêndoa torrada, que vira chá, o vinagre balsâmico, a aguardente, os cosméticos, as geleias, o melaço. É impressionante esse potencial”, reforça ele, lembrando que o cacau é a cadeia agrícola que mais emprega no Brasil. São quase 800 mil pessoas vivendo da cultura. “São pontos que muita gente desconhece, inclusive os governantes”, acrescenta. Outro desafio é ensinar os produtores a lidar com as oscilações os preços do cacau, que é uma commodity, ou seja, tem cotação internacional.

Amazônia

Pacífico - .

Lessa tem a certeza de que o preservacionismo do cacau vai salvar a Amazônia. “Não tenho dúvidas disso. Uma roça de cacau é seis vezes mais rentável do que a de gado. Não precisa desmatar para plantar cacau”, ressalta. Esse discurso será importante para abrir novas fronteiras para o cacau e os chocolates brasileiros. “A Índia, a China e a Rússia, que têm populações enormes, praticamente não consomem chocolates ainda. No Brasil, o consumo médio per capita é de 3 quilos por ano; na Suíça, de 10. Entre indianos, chineses e russos, o consumo é de 0,5 quilo por pessoa. Portanto, se considerarmos que estamos falando de uma cultura que cuida do meio ambiente e de um produto que é saudável, o cacau será o alimento do futuro”, sentencia.

A avenida para aquele jovem baiano que não quis ser doutor está completamente desimpedida. “Queremos chegar à Alemanha, à Suíça e ao Oriente Médio e, claro, à Ásia”, diz. Tudo será feito com os dois pés no chão, com pequenas marcas, tendo o cacau como a grande estrela. “Entrar na Europa não é fácil. É o maior mercado produtor e consumidor de chocolates do mundo. Mas vamos chegar com um grande showroon, envolvendo vários produtos. Para isso, vamos inaugurar a primeira Casa Brasiliana, em outubro, no Porto”, revela. “Temos de sonhar sempre. E realizar. Nada é impossível”, afirma.