A professora Éllen Cintra caminha por uma rota pavimentada pelas gerações que a antecederam. A perseverança e o incentivo dos avós e dos pais se tornaram o combustível para impulsionar os sonhos e a luta da menina, da adolescente e da mulher que, hoje aos 38 anos, fez do ensino uma missão que tem como objetivo maior garantir que outros meninos e meninas negros sejam tratados com respeito e alcancem protagonismo.
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"Foi determinante conviver na escola pública, ser uma criança preta lá. Eu sempre fui muito acolhida pela minha família, que era absolutamente simples. Eles não debatiam o racismo, mas eu sabia das coisas. Sabia que havia situações que eu não podia aceitar", relata Éllen. "E eu saí da escola pública com uma promessa: a de que eu voltaria para fazer melhor, e que nenhuma criança preta retinta jamais sofreria o que eu e meus irmãos sofremos."
Mais velha, Éllen defendia os irmãos Robert e Maykon quando percebia que eles estavam sendo maltratados na escola, em Franca, no interior de São Paulo. Em casa, o que os três aprendiam era amor e respeito. Não havia razão, portanto, para ser diferente na escola. O pai, Luiz Fernando Cintra, 62 anos, sapateiro, completou até a 5ª série, e a mãe, Lúcia Helena Manuel Cintra, 61, costureira, até a 4ª série. Mostrar aos três o valor da educação é a forma que encontraram de possibilitar que todos pudessem concretizar os próprios sonhos no futuro.
No caso de Éllen, uma habilidade especial para os estudos era visível desde cedo. A avó materna, Maria Aparecida Dias Manuel, a "vozinha", reforçava o time de torcedores da primeira fileira. "Ela sempre me via estudando muito — eu roubava livros na biblioteca — e me dizia: 'Isso mesmo, minha filha, estuda pra você ser o que você quiser'", relembra a professora, que emenda, aos risos: "Ah... Eu devolvi todos os livros!"
Já os pais aumentavam a barra da exigência em casa. "Você tem facilidade para aprender, então a gente não aceita nada menos do que um B", diziam, e reforçavam que ela tinha de buscar ser a melhor. "Eles trabalhavam muito. Não tinha sábado, não tinha domingo. Mas meu pai sempre sentava comigo para fazer tarefa e, minha mãe, para ler comigo."
De Dona Lúcia Helena, a primogênita herdou o capricho. "Nossos livros eram todos encapados, mesmo que fosse no saquinho de arroz. Ela recortava o papel de presente e colocava nas folhas do meu caderno; costurava nossas mochilas e pintava à mão. Ambos sempre foram muito zelosos", emociona-se a professora.
O talento de Éllen começou a se sobressair cedo. No ensino médio, quando jogava basquete de rua num projeto social, ganhou bolsa para representar o CCBEU Franca, um centro binacional de ensino de inglês. Quando o campeonato terminou, começou a estudar inglês e a atuar como monitora voluntária. A habilidade chamou a atenção das professoras e das diretoras da escola, que a incentivaram a aplicar para a bolsa da conceituada Comissão Fulbright. E ela foi selecionada não uma, mas duas vezes para estudar fora do país. Entre 2009 e 2010, foi professora assistente de língua portuguesa na Loyola University, em Chicago. Mais tarde, fez o doutorado sanduíche na Universidade da Califórnia Riverside.
Ao longo do caminho, outros encontros foram fundamentais. A xará Ellen Cristina, sua amiga desde a 3ª série, representou a companhia nos desafios na escola. "A gente se desafiava a tirar notas altas, se ajudava muito, e ela quem sempre falava de ir pra universidade, não levar desaforo pra casa, ralar e ser independente", recorda-se.
Confiança na escola
A graduação finalizada em 2005, em letras português e inglês, pela Universidade de Franca, foi o primeiro passo para cumprir a promessa que havia feito a si mesma lá atrás. "Meu compromisso é porque eu acredito de verdade na escola pública", reforça. Éllen contextualiza explicando que foram as experiências ruins que a levaram a buscar fazer a diferença na vida dos estudantes. "Eu sempre fui uma menina que brigou muito na escola. Professor não podia faltar e tinha que ter atividade cultural, se não eu reclamava", afirma. "Quando eu descobri que existia vestibular e que a gente podia estudar na universidade pública de graça, eu fiquei muito revoltada. Por que eles não compartilhavam aquilo com a gente?", questiona. "Eu acho que tem um fazer intencional do Estado em alguns processos de violência", critica.
Em 2011, Éllen foi selecionada no concurso da Secretaria de Educação do DF. A vinda para Brasília ficou marcada por uma série de outros choques e contrastes. Na rede pública, a escola para a qual foi destacada é o Centro Educacional Darcy Ribeiro, no Paranoá, região de periferia. Em horários alternativos, ela lecionava em colégio particular no Lago Sul, área nobre da cidade.
No Paranoá, Éllen pôde presenciar uma escola que não escondia, mas incentivava seus alunos a participarem de vestibular, Enem e Programa de Avaliação Seriada da Universidade de Brasília (PAS/UnB). Também ajudou a transformar, aos poucos, o tema da consciência negra em agenda permanente, diluída ao longo de todo o calendário escolar.
Um dos projetos que a marcou em especial foi o que culminou na exposição Um olhar sobre o feio. "A comunidade do Paranoá era construída como um lugar do feio, porque era uma das comunidades mais negras do Distrito Federal, e isso (o projeto) revelou uma série de olhares de belezas possíveis que o mundo nunca quis captar", revela.
Novos significados
Mestre em educação pela UnB, Éllen hoje se dedica aos estudos e ao casamento com a advogada Camyla Hendrix Fernandes de Sousa. A professora está afastada para o doutorado, na mesma área e também na federal de Brasília. Ela escreve a tese Uma educação feita por mãos negras: sentidos e significados das vozes e dos fazeres de educadoras (es) negras (os) na educação básica no Brasil e nos EUA .
A partir de entrevistas com 10 professores e professoras negros do Brasil e 10 dos Estados Unidos, Éllen pretende traçar como uma tradição radical negra se manifesta da diáspora a partir do fazer pedagógico desses profissionais, observando como eles imprimem os sentidos e significados da educação para a população negra e constroem esses fazeres de forma diferenciada para essa mesma população.
"A educação não tem um sentido único. Tem sentidos muito mais amplos que, ao longo da história, foram ressignificados", explica. Ela cita como exemplo docentes negros que desafiaram sistemas segregacionistas — no pré e no pós-abolição da escravatura — e que têm seus trabalhos invisibilizados na prática pedagógica contemporânea, excluídos tanto dos textos clássicos da pedagogia quanto dos críticos, nos dois países. "Eu parto de uma discussão teórica que se chama antinegritude — como ela opera estruturando as relações sociais no mundo para o apagamento e genocídio da população negra, especialmente a partir da educação", detalha.
Os professores negros, explica Éllen, percebem essa realidade a partir de três lugares: da educação básica, da universidade, e da atuação em sala de aula. "O que é recorrente nas entrevistas é que existe um cenário de muita violência contra professores negros em qualquer uma dessas três frentes: a nível individual e a nível estrutural, pela ação do próprio Estado ou dos sujeitos ao redor. E isso se repete nos dois países", observa.
A pesquisa revela problemas sérios de disputa curricular. "O Estado Nação brasileiro e o americano se negam a reconhecer a humanidade da população negra", atesta a professora. No caso do Brasil, isso ocorre até mesmo no cumprimento da legislação que obriga a inclusão no currículo de História e Cultura Afro-Brasileira. Sem gerar condições para o ensino e a aprendizagem, acaba-se por folclorizar a população negra num lugar de subserviência.
Por outro lado, a tese também reforça a importância de se ter professores negros em espaços majoritariamente ocupados por estudantes pretos e pardos. São eles que conseguem fazer aqueles alunos entenderem a própria humanidade, garantindo que "sejam respeitados em toda a sua amplitude".