O mundo está mudando para melhor. A passos lentos, mas está. A causa LGBTQIAPN tem observado uma considerável evolução na sociedade e um dos reflexos disso tem sido a inserção no mercado de trabalho de profissionais que pertencem a comunidade. De acordo com a plataforma Vagas.com, o volume de anúncio de vagas destinado ao público representado pela bandeira arco-íris registrou aumento de 2% em dois anos, saltando de 487 no primeiro semestre de 2021 para 496 no mesmo período deste ano. Os desafios, todavia, não acabam. Além de inserir nos postos de trabalho, ativistas e especialistas destacam que é preciso promover a inclusão desses profissionais em um ambiente laboral mais harmônico.
Para o especialista em Diversidade e Inclusão da Vagas, Renan Batistela, o avanço de 2% na oferta de oportunidades, mesmo que tímido, é um sinal de que muitas organizações estão buscando tornar seu time mais diverso. "O número não é tão expressivo, mas, em se tratando de um grupo minorizado, todo pequeno aumento de ofertas no mercado de trabalho é sempre uma vitória a ser comemorada, principalmente se considerarmos que, há poucos anos, esse recorte social era pouco ou nem era considerado", avalia ele, que não classifica com o viés da inclusão por cotas a alta nas oportunidades de emprego anunciadas para contratação de gays, lésbicas, trans e outros representantes da diversa comunidade. "Mesmo que fosse por uma questão de cotas, ainda assim teríamos pessoas desse recorte social sendo incluídas no mercado de trabalho. Talvez se a discussão da diversidade e inclusão e as cotas não existissem, muito provavelmente as empresas não teriam a intencionalidade de contratar, principalmente, pessoas trans. Desta forma, o importante é que essas pessoas estejam tendo oportunidades de trabalho", reforça.
Por outro lado, ainda que a inclusão esteja crescendo, o preconceito ainda persiste. De acordo com levantamento divulgado pelo LinkedIn, oito em cada 10 pessoas LGBTQIAPN sentem-se confortáveis para compartilhar a identidade de gênero e a orientação sexual no ambiente de trabalho, mas, 43% relatam ter sofrido discriminação, principalmente por meio de piadas e comentários homofóbicos por parte de pares e superiores. E a percepção não é exclusiva a quem sofre na pele. Entre os profissionais heterossexuais, 53% relataram alguma situação discriminatória devido à orientação sexual ou identidade de gênero de colegas.
Os entrevistados afirmaram, ainda, que há pouca representatividade no mercado de trabalho, principalmente, pela falta de pessoas trans: 77% dos entrevistados sentem falta de profissionais transgêneros no mercado de trabalho formal. "A gente pode olhar nas principais empresas e órgãos públicos e perceber que não existem profissionais trans em cargos de destaque, muito menos de chefia. Há uma inclusão e a principal barreira está aí", aponta o coordenador do Centro LGBTS de Brasília, Júlio Cardia.
Para Renan Batistela, quebrar essa barreira na hora da seleção de pessoal é um forte desafio para as organizações e seus setores de recursos humanos. "É importante que sejam realizadas ações de letramento para as lideranças, fazendo que pessoas que tenham esses cargos se tornem mais conscientes da importância da diversidade e inclusão. Treinamentos sobre liderança inclusiva e vieses inconscientes podem ser boas opções para começar", observa o especialista. Ele reitera que, para que as equipes de trabalho sejam menos hostis à presença de pessoas LGBTQIAPN , todas os atores devem receber letramento frequente, e não apenas no mês do orgulho. "Podem ser ações como palestras, rodas de conversa, guias na intranet, grupos de afinidade, entre outras. Além disso, é importante que seja disponibilizado um canal seguro de denúncias para que sejam relatados eventuais casos de preconceito ou discriminação", complementa.
Constrangimento e resistência
“Não é fácil ser uma pessoa trans em um ambiente laboral no Brasil”, declara Bianca Moura de Souza, 53 anos, a primeira mulher transgênero reconhecida em cartório a se aposentar no serviço público da capital do país. Servidora do Governo do Distrito Federal (GDF) durante décadas, a maranhense radicada na capital do país desde 1988 reforça as estatísticas ao declarar uma série de desafios que enfrentou em sua jornada profissional. Segundo ela, o ambiente de trabalho ainda é muito hostil para a diversidade sexual.
“Eu uso o banheiro masculino, no mesmo setor, durante cinco anos. Aí depois começa a minha transição e quero usar o banheiro feminino, mas começam os questionamentos internos por minhas amigas evangélicas que trabalham comigo e que, até então, mantinham uma situação de respeito. Começam a bater o pé e dizer que, se eu usar, elas não usam”, relata Bianca, reforçando que precisou ser muito resistente para poder sair do sanitário reservado aos homens e passar a usar o das mulheres. “Isso depois de muitas reuniões, depois de muitos questionamentos, de pessoas que tiveram que mudar o posto de trabalho. Eu resisti, não saí do meu setor e passei, com muita resistência, a usar o banheiro feminino”, acrescenta.
A servidora pública aposentada também relembra situações que não envolvem a discussão frequente do uso dos banheiros, como as festas no ambiente de trabalho. “Vamos tirar foto só com os homens ou só com as mulheres. Algumas pessoas fazem de propósito: puxam as mulheres e me deixam de lado. E isso causa um constrangimento, uma tristeza...”, desabafa. Nas comemorações do 8 de março, outro constrangimento quando o chefe distribui flores, os homens cumprimentam todas, menos aquela mulher trans. “As pessoas não nos reconhecem como feminino e a gente fica naquele constrangimento. Mas levanta a cabeça, segue em frente”, lamenta Bianca.
Dados de uma pesquisa de 2020, realizada em 14 estados brasileiros, revelam que 38% das empresas têm restrições para contratação de pessoas LGBTQIAPN+. Tábata Silva, gerente do portal de recolocação profissional Empregos.com.br, fala que essa questão é fruto de um passado de exclusão e preconceito que ainda se reflete nos dias de hoje. “A presença desses profissionais no mercado de trabalho ainda enfrenta muitas barreiras e desafios. São poucas as empresas que têm academias ou comitês de diversidade, que possuem ações para educar colaboradores por meio de bate-papos, palestras, rodas de discussões e treinamentos para acolher essa comunidade”, afirma.
Anabel Carvalho Martins Filardi trabalha no setor de Empregabilidade da Escola da Nuvem, uma organização sem fins lucrativos que visa garantir a educação e a empregabilidade de pessoas em situação de vulnerabilidade social para que elas consigam ingressar no setor de cloud computing — setor que, segundo ela, é predominantemente masculino, branco e heteronormativo. “O mercado de trabalho é formado por pessoas e cada indivíduo possui valores pessoais e ideais. Entretanto, muitas vezes essas crenças se tornam limitantes e estão recheadas de estereótipos, o que impacta todo o percurso das pessoas que fazem parte de grupos sub representados no ambiente corporativo, desde o processo seletivo até oportunidades de crescimento de carreira”, opina. Para a especialista, o preconceito pode ser algo invisível e, por muitas vezes, não ser consciente, dificulta o processo de mudança. “Muitos comportamentos são tão enraizados em nossa sociedade e rotina que são naturalizados. Para mudar a realidade que vivemos hoje, é essencial que cada pessoa crie consciência de seu lugar de fala e privilégios”, argumenta.
*Estagiária sob a supervisão de Patrick Selvatti