Conquista histórica prestes a ser implementada, a lei que dispõe sobre igualdade salarial e remuneratória entre mulheres e homens e inclui na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) medidas de fiscalização, controle e multas, pode ser sancionada neste semestre. As novas normas contemplarão não apenas o salário e outros tipos de remuneração, mas temas como condições e ambiente de trabalho, oportunidades de ascensão profissional, divisão das responsabilidades no cuidado de crianças, idosos e pessoas com deficiência e doenças incapacitantes e aspectos étnico-raciais.
Aprovada na Câmara dos Deputados por maioria esmagadora no início deste mês, a proposta do Executivo foi construída por diversas pastas, sob a liderança do Ministério das Mulheres, a medida estabelece, ainda, o aumento da fiscalização e a aplicação de multa até dez vezes o valor do novo salário devido pelo empregador ao empregado discriminado, elevada ao dobro no caso de reincidência. O texto seguiu para o Senado, onde passará pelas comissões de direitos humanos, assuntos sociais e assuntos econômicos e, depois das avaliações e recebimento de emendas, vai à votação em plenário e, finalmente, encaminhado à sanção presidencial.
Promessa de campanha do presidente Lula e condição da ex-candidata Simone Tebet para apoiá-lo no segundo turno, o plano de igualdade salarial entre homens e mulheres estabelece mecanismos de transparência salarial e remuneratória e incremento da fiscalização, além de disponibilizar canais específicos para denúncias. Atual ministra do Planejamento e Orçamento, Tebet pontua que a expressiva votação na Câmara dos Deputados — 325 votos a favor e 36 contra — mostra que essa é, hoje, uma pauta do País, não apenas das mulheres.
"Há um consenso de que ela trará ganhos de produtividade e vai estimular os empregadores a contratar mais mulheres", observa a ministra, considerando que as alterações na multa não diminuem o enorme potencial da lei. A primeira versão enviada ao Congresso estabelecia multa de dez vezes o maior salário pago na empresa, elevado em 100% em caso de reincidência. O trecho em questão, no entanto, foi alvo de críticas de parlamentares e segmentos e foi alterado em acordo firmado com líderes partidários. A multa administrativa, antes de até 5% sobre a folha de pagamentos, também passou por modificações e ficou definida em até 3%.
"Antes, a multa era irrisória. Sabemos que a lei sozinha não vai resolver tudo. Mas ela é o primeiro passo e vai fazer com que o empregador pense duas vezes antes de cometer o ilícito de contratar mulheres com salários inferiores aos dos homens, quando exercem a mesma função e possuem currículo semelhante", afirma Tebet, lembrando que há 80 anos a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) já estabelecia que homens e mulheres com o mesmo cargo, função e perfil devem receber igual salário.
"Sem punição, essa lei virou letra morta. Em 1988, a 'bancada do batom' conseguiu colocar no texto da Constituição que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Isso já deveria ser suficiente para garantir que a mulher que está exercendo a mesma função do homem, com a mesma capacidade, mesma escolaridade, ganhasse salário igual. Mas isso também foi insuficiente. Na reforma trabalhista em 2017, a bancada feminina conseguiu mais um avanço, mas a multa irrisória não levou à mudança do comportamento dos empregadores", explica.
Para Tebet, o efeito punitivo, agora, fará toda a diferença. "Trará apoio para a mulher que está sendo discriminada e será um instrumento para que as mulheres, organizadas nos seus sindicatos, reivindiquem o cumprimento dessa lei", alerta a ministra, que no Senado Federal liderou a primeira bancada feminina da história e tornou-se presidente da Comissão Mista de Combate à Violência contra a Mulher.
Curiosamente, na Câmara dos Deputados houve votos contrários ao projeto de lei de dez representantes da bancada feminina, seis delas do PL. Tebet, que frisa respeitar o contraditório, lembra que, quando o Congresso votou a regulamentação do trabalho das domésticas, que muitas vezes mais se parecia análogo à escravidão, também se levantou a hipótese de que haveria desemprego, tal e qual a justificativa de quem votou contra o projeto de lei da equidade salarial entre homens e mulheres. "O que importa, agora, é o conjunto da obra, com a votação maciça da Câmara entre deputadas e deputados, numa união de esforços para reverter mais esse verdadeiro retrocesso civilizatório que teimou em perdurar até nossos dias", diz.
Possibilidade concreta de correções
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as brasileiras ganham, em média, 78% da média salarial dos homens. No caso das mulheres negras, o cenário é ainda mais grave, uma vez que elas recebem menos da metade do salário dos homens que não são negros.
A vice-coordenadora nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho (Coordigualdade) do Ministério Público do Trabalho, Danielle Olivares Corrêa, observa que a questão da discriminação da mulher no mercado de trabalho é mais complexa do que a desigualdade salarial por ainda imperar uma sociedade de cultura patriarcal e machista, fator que repercute de forma direta também nas relações de trabalho, seja no acesso à carreira e promoções, seja na relação interpessoal no trabalho, muitas vezes permeadas por várias formas de violência moral, psicológica e sexual.
Danielle é mais uma a considerar extremamente positivo o projeto de equiparação salarial do Executivo federal, mas acredita haver, ainda, um longo caminho a percorrer. “A nova lei tem pontos muito positivos na busca da igualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho e traz uma maior transparência no plano de cargos e salários das empresas a fim de se verificar possíveis distorções salariais em detrimento da empregada mulher e a possibilidade concreta de correções”, avalia.
“Embora possa trazer certo desconforto em razão de prever fiscalização e multa, acarretará em vantagens para o mercado de trabalho e para a economia, com tratamento isonômico entre os profissionais homens e mulheres, que certamente terão mais incentivo e produzirão mais, ao mesmo tempo em que o aumento da renda familiar também gera impacto no crescimento econômico, beneficiando toda a sociedade.”
Ela acentua que, ao impor obrigações, a lei precisa, necessariamente, prever penalidades para ter coercitividade, a fim de que as empresas entendam que será mais compensatório cumprir o comando legal do que o pagamento da multa. “Entendo que as empresas, de forma geral, têm um amadurecimento de gestão para o cumprimento do comando legal, ainda mais nos dias atuais, em que se fala tanto do ESG [conjunto de padrões e boas práticas que visa definir se uma empresa é socialmente consciente, sustentável e corretamente gerenciada], cujo um dos pilares está fundado na responsabilidade social voltada ao cumprimento da legislação trabalhista, diversidade, direitos humanos, dentre outros valores socialmente relevantes. Esperamos assim, que a nova lei não dificulte, mas aprimore a gestão, de forma a promover a igualdade, que é a finalidade da lei.”
Políticas internas
Para a sócia-diretora da ReschRH, e docente da pós IAG – Escola de Negócios da PUC-Rio, Jacqueline Resch observa que, apesar da demora em formatar devidamente a lei de equiparação salarial, nunca é tarde para recuperar o tempo perdido. “Embora tardia, a nova legislação é muito importante para corrigir as falhas do passado”, diz, lembrando que há pelo menos seis anos as mulheres brasileiras figuram em pesquisas como graduadas em maior escala que os homens, assim como o número de empreendedoras.”Hoje,muitas sustentam suas famílias, mas as políticas públicas não acompanharam isso. Ainda há muitas mulheres que enfrentam dupla jornada, trabalham fora, cuidam da casa, dos filhos, dos idosos”, pondera a especialista no mercado de grandes empresas.
Resch alerta que o mercado deve estar atento a essas mudanças, que as empresas devem adotar políticas internas para acolher e lidar com a realidade feminina.”Ainda vemos hoje empresas formatadas no modelo antigo mas, o mais importante é que haja leis que garantam direitos e dividam a dupla jornada”, acentua a filha de imigrantes alemães, judeus fugidos da guerra, que se tornou empreendedora aos 30 anos, defendendo, ainda, que a legislação trabalhista deve ser atualizada e que as políticas públicas devem ser coerentes com a realidade que as mulheres vivem hoje.
Com mais de quatro décadas atuando em recrutamento para grandes corporações, Resch conta que há cerca de dez anos vem observando comportamento atípico das empresas, que passaram a pedir a inclusão de mulheres nas listas de finalistas pretendentes a cargos de chefia,embora considere o preconceito de gênero uma questão ainda anacrônica. “Há profissões que ainda são muito associadas aos homens, que prosseguem carregando ideias preconceituosas, como na área tecnológica e engenharia, que no imaginário coletivo ainda são exclusivamente masculinas. Infelizmente ainda vivemos em uma sociedade muito conservadora. Por isso, muitas mulheres que optam pela maternidade buscam outras formas de empreender, para ter uma vida mais flexível.”
Resch lembra que já existe na legislação brasileira a determinação de que homens e mulheres que realizam o mesmo trabalho sejam remunerados da mesma forma, mas, na prática, muitas vezes essa exigência legal não é cumprida. A possibilidade de aplicação de multas é vista por ela como um grande avanço. “Todo recurso é importante para reverter a realidade que hoje enfrentamos”, alerta.