Historicamente, a taxa de desocupação da população de pretos e pardos é maior em relação à de brancos. Essa diferença ocorre não só nos níveis de desemprego, mas também na renda. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, a taxa de desempregos para pretos e pardos passou de 12%, enquanto brancos correspondem a 9%.
Mulher, negra e desempregada, Bruna Gabrielle Oliveira, 22 anos, retrata essa realidade. Há mais de quatro meses ela enfrenta dificuldade para se recolocar no mercado de trabalho. Bruna conta que foi vítima de preconceito no emprego anterior, motivo que a levou a pedir demissão. "Era a única funcionária negra. Apesar de desempenhar a mesma função das demais, com as mesmas atribuições, sempre acabava fazendo o trabalho braçal, tarefas como lavar banheiro, panos de chão e subir com as caixas para o estoque", conta.
Bruna confessa que chegou a se sentir responsável por considerar ter sido vítima de racismo na empresa. "No começo, comentava sobre essa situação com meu avô, também negro, e ele dizia que não se tratava de racismo. Passei, então, a me sentir culpada. Achei que eu estava me vitimizando", lembra. "Muitas vezes, antes de fechar o meu caixa, meus chefes conferiam se o valor estava certo. Observei que eles não faziam isso com a outra garota", prossegue, revelando ter se sentido "validada" apenas quando conversou com outros amigos negros, e eles relataram ter vivido situações semelhantes.
Para ela, a gota d'água foi o episódio claramente preconceituoso protagonizado por seus chefes. "Eles pediram para eu lavar o banheiro, e eu disse que iria repassar essa função para a outra colega. Disseram, então, que gostariam que eu mesma fizesse o serviço, alegando que eu 'já estava acostumada'. Decidi, finalmente, pedir demissão naquele dia."
Gerente do portal nacional de recolocação profissional Empregos.com.br, Tábata Silva considera ser papel das empresas, no desempenho de sua função social, contribuir com a redução da desigualdade racial e eliminar a discriminação dos seus processos seletivos. "As vagas, afirmativas visando a inclusão racial nas empresas privadas são um ótimo exemplo de por onde as companhias podem começar", afirma.
A especialista pondera, no entanto, que não basta abrir vagas. Segundo ela, é necessário ter pessoas negras com empregos qualificados e em cargos de liderança. "É papel das empresas, no desempenho de sua função social, contribuir com a redução da desigualdade e eliminar a discriminação nos processos seletivos", observa, salientando a importância da formação de uma equipe diversa, formada por pessoas pretas, pardas, brancas, com gêneros diversos e de diferentes classes sociais, com culturas e histórias diferentes umas das outras.
Tábata avalia, ainda, que, além de garantir o devido apoio a pessoas negras, é imperativo denunciar situações de racismo no ambiente de trabalho. "Nas empresas, é necessário ter canais seguros para que as pessoas possam fazer denúncias sem medo de represálias. Promover a diversidade racial e a devida segurança no mercado de trabalho é papel de todos", diz.
Outros estudos mostram que o preconceito racial e as altas taxas de inatividade também são fatores decisivos para que pessoas negras partam para o próprio negócio.
O chamado afroempreendedorismo, por exemplo, vem ganhando cada vez mais espaço. Apesar disso, afirmam os especialistas, é urgente que empreendedores e as organizações entendam o papel essencial da diversidade, da igualdade e da inclusão para o desenvolvimento das empresas.
O empresário e CEO da 4Life Prime Saúde Ocupacional, Alex Araujo, avalia que o problema está concentrado em pequenas e médias empresas com, no mínimo, R$ 20 mil de faturamento e máximo de R$ 300 mil. "São locais que, normalmente, não têm um RH muito bem estruturado e sofrem com a escassez de benefícios, como farmácias e supermercados, por exemplo. Na maioria dos casos, não existe um profissional dedicado a orientar colaboradores sobre os temas que acontecem no dia a dia, como casos de assédio sexual, racismo e violência", explica.
Estética, um grande negócio
Pesquisadora em estudos de gênero e raça, a professora de relações raciais e diversidade da Universidade de Brasília (UnB) Kelly Quirino aponta o avanço do aforeempredorismo como alternativa econômica, cultural e social.
Para a pesquisadora, a modalidade reflete uma ótica de circulação de dinheiro entre pessoas negras. “Antes, essa prática era vista apenas como sobrevivência. Hoje, é a formalização dos trabalhos de pessoas negras, uma alternativa para a inclusão em um mercado que formalize profissões”, afirma. “Além disso, contribui com o chamado black money, que é o dinheiro que circula entre as pessoas negras no mercado. Nesse sentido, prossegue ela, o black money surge como a função de alocar a concentração de renda e diminuir as desigualdades.
“O afroempreendedorismo busca sempre contratar e comprar de pessoas negras, o que faz com que as pessoas que estão sempre à margem financeira e social da sociedade sejam empoderadas e consigam se inserir com plenitude no mercado”, completa.
Quirino avalia, ainda, que o afroempreendedorismo não tem somente uma proposta econômica, mas também cultural e social, fazendo com que pessoas negras ocupem espaço e sejam representadas em diversos segmentos do mercado de trabalho. “Apesar de observarmos um avanço frente ao racismo, as ações ainda estão muito segmentadas, uma vez que as vagas afirmativas têm muito mais focos no começo de carreira”, afirma, lembrando que as pessoas negras que estão no meio ou no fim de carreira estão sendo subutilizadas.
A afroempreendedora Stéphane Lopes, 31, resolveu inovar ao ingressar no mercado fabricando toucas e outros acessórios de cetim com tamanho diferenciado para cabelos crespos avolumados. Lançou, então, a grife Preta Sim, com o slogan “a força do reconhecimento e orgulho racial”. “Como mulher negra passando pela transição capilar precisava de acessórios que me ajudassem nos cuidados com meu black. A minha necessidade é a mesma de várias pessoas ao meu redor. O cabelo cacheado e crespo, muitas vezes, é esquecido pelas grandes marcas. Por notar esse falta, decidi trabalhar com toucas de tamanho “fora do padrão”. Eu fiz à mão minha primeira touca e fronha de cetim. Usei por uma semana e decidi investir como negócio”, conta.
nvestir como negócio”, conta. Segundo ela, a estratégia básica do empreendimento consiste em elevar a autoestima, empoderar e incentivar o cabelo natural cacheado e crespo. “Penso que os afroempreendedores formam uma grande família, e participando de eventos com expositores negros, esse laço se fortalece, possibilita trocas, compartilhamento de experiências e ideias. O famoso network com os seus tem valor inestimável”, afirma.
Paralelamente, Stéphane procura enfrentar o racismo da melhor forma possível, na base da amizade. “Muitos dos meus clientes se tornam amigos, e muitos amigos se tornam clientes. Diversas vezes fui fortalecida por ambas as partes. É, de fato, uma luta diária enfrentar o racismo, mas juntos, coletivamente, nos tornamos mais fortes e corajosos”, ensina a realizadora, que começou embalando as peças em papel de pão.
Também afroempreendedora, Jennifer da Cruz, 33, trancista há 17 anos e empreendedora há cinco anos, sempre garantiu seu sustento cuidando dos cabelos de outras mulheres e homens negros. Para ela, mais que uma estratégia de enfrentamento à susceptibilidade econômica e social inerentes à população negra, o afroempreendodorismo implica diretamente na valorização do trabalho. “Dessa forma, o dinheiro passa a circular entre a gente”, diz.
Jennifer acredita que essa modalidade de empreendimento em sua área de atuação, sobretudo para os afrodescendentes, vem ganhando espaço nos últimos anos. E que a tendência é se firmar ainda mais no mercado. “O afroempreendedorismo cresceu principalmente dentro da estética e cuidados com a pessoa negra, coisa que antes não se via por causa do racismo. Hoje, principalmente em Brasília, existem inúmeros centros de estética especializados em pessoas negras.”, afirma. “Quando entramos no mercado de trabalho, nosso cabelo é visto pelas empresas como ‘antiprofissional’, e muitos perdem vagas e oportunidades. Por isso, o afroempreendedorismo é tão importante, pois quando contratamos pessoas negras faz toda a diferença”, completa.
NOVA ORDEM
Empresas terão de incluir raça e etnia nos registros administrativos
» O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou e publicou, na semana passada, lei que, ao alterar o Estatuto da Igualdade Racial, prevê a inclusão de informações sobre raça e etnia de trabalhadores nos registros administrativos de empregados dos setores público e privado. Segundo o Governo Federal, a nova lei representa “um importante passo na promoção da igualdade étnica e no combate às desigualdades sociais resultantes do racismo”.
» Publicada no Diário Oficial da União de segunda-feira (24), a Lei Nº 14.553/23 prevê, ainda, que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) faça, a cada cinco anos, pesquisa para mensurar o percentual de ocupação desses segmentos no setor público. Com essas mudanças, o governo pretende “produzir informações que permitam superar estigmas raciais na sociedade brasileira”. Em nota, o Palácio do Planalto acrescenta que, ao conterem campos destinados a identificar o segmento étnico e racial do trabalhador, os registros administrativos poderão subsidiar a implementação de políticas públicas.
» Durante as celebrações do Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, o governo anunciou a decisão de destinar um mínimo de 30% dos cargos em comissão e funções de confiança da administração federal a pessoas negras.
"Inclusão implica redução da desigualdade"
"A inclusão social de pessoas negras e pardas no mercado é fundamental para a redução da desigualdade e eliminação da discriminação nos processos seletivos das empresas", afirma Carmen da Silva Ferreira, 63 anos, considerada umas das principais lideranças na luta por moradia digna no Brasil. Por mais de duas décadas, Carmen esteve à frente do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), um dos mais atuantes de São Paulo.
No mês passado, Carmen Silva foi empossada no comando da Assessoria de Participação Social e Diversidade do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), pasta criada pelo atual governo com o objetivo de reabrir o diálogo com os movimentos sociais, abandonado nos últimos anos após amplo desmonte das estruturas de participação popular na esfera pública.
A meta em sua nova função, afirma, é trabalhar de forma integrada com os demais órgãos e instituições do MDIC para desenvolver ações e políticas que promovam a diversidade e a inclusão social no mercado de trabalho. "Para reduzir as desigualdades raciais no mercado de trabalho precisamos atuar em diversas frentes, incluindo a educação, a qualificação profissional e a promoção de políticas públicas que incentivem a contratação de pessoas negras e pardas", pontua.
Para atingir esses objetivos, prossegue Carmen, serão promovidas ações de capacitação e formação profissional que atendam às demandas específicas dessas populações, além de criar campanhas de conscientização sobre a importância da diversidade e da inclusão no mercado.
O incentivo ao empreendedorismo é outra importante ação a ser colocada em prática como forma de efetivar a construção de uma sociedade com menos preconceito e discriminação. "Acreditamos que o empreendedorismo pode ser uma ferramenta importante para reduzir as desigualdades raciais no mercado de trabalho. Por isso, pretendemos desenvolver programas específicos de incentivo entre pessoas negras e pardas, oferecendo suporte técnico e financeiro para que elas possam iniciar e manter seus próprios negócios", diz.
Ações efetivas para tentar reverter o quadro de desemprego e de baixa renda entre pessoas negras e pardas também integram as ações da Assessoria de Participação Social e Diversidade do MDIC. "Nosso objetivo é promover políticas públicas que incentivem a criação de empregos formais e a redução da informalidade no mercado de trabalho", diz, explicando que, para efetivar essas práticas, buscará parceria com outros órgãos do governo, além de empresas e organizações da sociedade civil. "A ordem é desenvolver políticas de inclusão produtiva e de acesso ao crédito para empreendedores", frisa.
Conhecida por levar reivindicações e apresentar soluções criativas em todas as esferas nas quais são tomadas decisões que afetam o povo sem endereço e sem visibilidade, Carmen Silva reforça que a inclusão social de pessoas negras e pardas no mercado de trabalho é uma prioridade absoluta da pasta. "Estamos empenhados em trabalhar de forma integrada para reduzir as desigualdades raciais e promover a inclusão no mercado de trabalho", garante.
Ganhadora de inúmeros prêmios, entre eles o da Federação Nacional de Arquitetos e Urbanistas, pela "petulância" em devolver vida a prédios abandonados no coração da capital paulista, contribuiu para amenizar dificuldades de mais de 3 mil pessoas em situação de vulnerabilidade. E considera que a criação das novas assessorias demonstra a vontade de escuta do governo e aponta para a construção de políticas públicas capazes de reduzir as desigualdades sociais. "Com minha experiência na luta digna por moradia e pelo direito à cidade, trago a troca de saberes, o trabalho em rede e a mobilização social em diferentes classes", finaliza.