A história do professor Rogério Nunes Passos, 45 anos, é composta por ingredientes distintos que, juntos, resultaram na receita perfeita para integrar um banquete digno de palácios. Uma pitada de destino, várias porções de perseverança, outra medida de dedicação e quilos de solidariedade e respeito ao próximo.
Não à toa, ele começou a carreira na educação onde provavelmente poucos docentes passaram: na cantina. Rogério foi aprovado no concurso de 2006 da Secretaria de Educação do DF, para o cargo de técnico administrativo, na função de merendeiro. À época, ele cursava história no UniCeub, ainda não pensava em se tornar professor, e fazia parte de um projeto de extensão que atendia a comunidades em situação de vulnerabilidade social no Setor de Chácaras Santa Luzia, na Estrutural.
Quando viu que havia uma vaga para atuar em escola da região administrativa, não pensou duas vezes, e foi trabalhar na cozinha da Escola Classe 1 Vila Estrutural. "A escolinha era de madeirite. Quando chovia, molhava a escola de ponta a ponta. Não tinha muro, era uma cerca de arame farpado. E toda aquela situação com os professores me chamou mais a atenção ainda. A questão de ver os meninos naquela situação, ouvir as histórias deles", relata o professor sobre o motivo de ter escolhido fazer a habilitação em licenciatura. "A vivência dentro da escola me fez querer a área de educação", completa.
"Eu fiquei como merendeiro de 2006 até 2008, e então fui chamado para a função de supervisor administrativo. Como era uma cidade muito carente, quase nenhum servidor queria ir para lá", conta Rogério, que aumentou a cada dia sua admiração pela Estrutural.
As experiências na sala de aula de fato se resumiram a períodos em uma escola particular e no estágio, mas a carreira se consolidou em cargos de gestão na Secretaria de Educação. Hoje, Rogério é diretor do Centro Educacional (CED) 4 do Guará, outra cidade do DF que tem lugar cativo em seu coração. A formação como professor de história permitiu que ele fosse escolhido para o cargo mesmo integrando a carreira de técnico.
Brasiliense de coração
Goiano, nascido na capital do estado, Rogério ainda carrega um pouco de sotaque na fala, mas conta que é um brasiliense de coração, já que mora na cidade desde 1995. Ainda na adolescência, quando os pais se separaram, Rogério se mudou com a avó, a mãe e os três irmãos para a casa de uma tia no Guará 2. Mesmo quando a mãe decidiu voltar em definitivo para Goiânia, ele optou por continuar na casa das tias. Casou-se cedo, e teve a filha mais velha, Débora, hoje com 21 anos.
"Aprendi a gostar daqui. Brasília me ensinou a ver essa questão de concurso, de educação e de formação com um outro olhar. Minha formação é todinha aqui", detalha ele, que terminou o ensino médio, se formou técnico em contabilidade, professor de história e ainda iniciou um curso de psicologia na capital federal. "Fiz psicologia na Católica e desisti. Pensei: 'Não, isso aqui não é muito para mim, não'. Até que me achei na história. Eu me apaixonei", detalha.
Até chegar ao curso ideal, Rogério navegou pelas ciências humanas, pesquisou as formações disponíveis nas faculdades do DF e tentou, por três semestres, entrar na Universidade de Brasília (UnB). Encontrou, no curso de história e no trabalho nas escolas, a realização.
Depois de trabalhar na primeira escola da Estrutural, assumiu um novo cargo no CEF 2 da mesma região, teve uma passagem rápida pelo Gama e veio o convite para ser supervisor no CED 4 do Guará, em maio de 2017. Três anos depois, virou diretor. Era 2020, "o fatídico ano da pandemia", lembra Rogério. E aí, um novo capítulo começou a ser escrito.
A dor do recomeço
"Começamos a gestão muito empolgados, com um monte de planos, um monte de coisa para executar", conta Rogério, que tem a parceria da vice-diretora, Ana Patrícia, para tocar todos os projetos da escola. Um mês depois do semestre letivo, no entanto, as aulas foram suspensas em razão da pandemia de covid-19. Os dois conversavam, achando que dentro de algumas semanas o problema se resolveria. Passaram-se meses e nada. Passou um ano. Dois.
"A gente brinca que aprendeu a ser gestor de duas formas", diz Rogério, hoje com certo alívio por ter superado o momento e voltado à normalidade. "Houve um estágio muito forte, foi muito dolorido. Uma gestão com escola fechada. Eu vinha para cá fazer horário, até para atender um pai ou outro, mesmo que com aqueles protocolos todos; entregar material impresso", relata.
"E sabe o que mais desafiou a gente? O impacto com relação às tecnologias. Porque a nossa formação ainda é muito precária. Inicial e continuada", destaca Rogério. Além disso, foi necessário enfrentar o sofrimento de cada um. "Não tivemos perda aqui na escola, nem de alunos, nem de professores. Mas, de parentes, foi um monte. O professor às vezes recebia a notícia: 'Um tio meu morreu agora'. Isso durante uma aula. Tinha reunião coletiva nossa em que parávamos, literalmente, para chorar", lamenta. "E mesmo assim eu tinha que continuar gerindo. 'Vamos lá, qual é a meta agora? Qual é a prova?' Isso ficou marcado na alma, no sentimento de cada um. Mas ficou o aprendizado, de que eu preciso dar outro passo na minha vida. Eu preciso abrir minha mente para outros tipos de conhecimento e, querendo ou não, eu tenho que abraçar a tecnologia de alguma forma."
Vínculo para a vida
Rogério brinca que saiu da Estrutural, "mas a estrutural não saiu da minha vida". Hoje, no CED 4 do Guará, quase a totalidade dos estudantes mora na região administrativa vizinha. "São oito ônibus de manhã e oito à tarde. Os alunos são transportados de lá para cá", enumera. "Deve ter alguma missão para eu fazer com esses meninos. Talvez incluí-los nesse aspecto que conseguimos no ano passado, de ajudar para que ingressassem na universidade pública."
A mudança começou tímida, reflexo também de ações de outras gestões, que conseguiram tirar a escola das manchetes policiais e transferi-la para o noticiário de educação e de histórias de sucesso. No ano passado, o CED 4 aprovou oito estudantes na UnB. Além do mérito deles próprios, o empenho da equipe escolar em divulgar datas e auxiliar nas inscrições foi o que fez toda a diferença.
"Um aluno que vem da escola pública, que vem da Estrutural, ele precisa saber que ele tem potencial para chegar lá", diz Rogério. A direção percebeu que os estuadntes, muitas vezes, não tinham sequer paciência para entrar na internet e fazer inscrição. Como bom professor, ele também não poupa a chamada de atenção quando é necessário. "Eu costumo brincar que eles usam a internet para tudo, menos para o que é essencial", alerta.
A escola passou, então, a divulgar datas, passo a passo para a inscrição, disponibilizar computadores e a incentivar os estudantes a fazerem as provas de acesso à UnB e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). "E falar para eles: 'Vocês conseguem'. Isso é essencial", resume Rogério. "Agora, essa é uma escola que pode ter uma história diferente, porque está conseguindo enxergar um futuro e encaminhar os alunos para esse futuro."
Vidas transformadas
À frente da gestão do CED 4 do Guará, Rogério encara o desafio, junto à equipe pedagógica e administrativa, de reger três escolas diferentes. As turmas do ensino médio são oferecidas nos turnos da manhã e da tarde, quando a escola também recebe estudantes dos anos finais do ensino fundamental. À noite, a instituição é a única da rede pública do Guará a ofertar a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e o ensino médio regular para alunos com defasagem idade-série.
Para percorrer o caminho que o levou até a esse ponto, Rogério diz que não há mistério: bastou acreditar na educação. "Como é que esse cara que começou como merendeiro e foi administrativo, chega na gestão? Primeira coisa acho que é acreditar que educação. E isso não é utopia. Não é falar da boca para fora. Senão, eu não estaria aqui. Educação é o único caminho que eu vejo, em termos legais, que pode fazer com que a pessoa sonhe em alcançar seus objetivos de maneira correta, concreta, decente e responsável."
Na visão do educador, dizer que a educação pode salvar vidas não constitui um clichê, é a mais pura verdade, e esse é o ensinamento que ele e a mulher, Adriana Corrêa, passam também para a filha, Alexia, 10 anos, e para o enteado dele, Pedro, 27. "Você pega um aluno igual a gente teve aqui agora, que passou em química na UnB e que estava totalmente desacreditado. Eu falo isso sem nenhum medo de errar: não tem valor no mundo que pague isso", diz Rogério. "Agora, sim, vai um clichê: (a educação) 'Ninguém te tira, ninguém te rouba, ninguém te leva'. Ninguém. Está na sua cabeça, no seu coração."